terça-feira, 30 de abril de 2013

António Cândido Franco sobre »Filosofia e Kabbalah«


Sample_153António TelmoFilosofia e KabbalahLisboa, Guimarães Editores /1989*
O título deste livro de António Telmo,Filosofia e Kabbalah, poderia na prática ser lido de outro modo: Filosofia e Poesia. Trata-se, com efeito, de uma obra que se organiza sempre em torno das relações entre Filosofia e palavra poética. Nela coexistem assim os estudos e as interpretações dedicados a poetas como Pascoaes, Pessoa e Camões com os trabalhos dedicados a filósofos também portugueses: Sampaio Bruno, Leonardo Coimbra e José Marinho. Esta interacção entre Poesia e Filosofia adquire em António Telmo uma consciência invulgar, que não se limita a encontrar linhas de correspondência entre filósofos e poetas portugueses, num diagrama subtil e muito ajustado (p. 84), mas vai ao ponto de postular a filosofia como arte poética porque tem a metáfora por instrumento. É ao defender que a metáfora é o verdadeiro organon do pensamento que Telmo firma uma verdadeira arte poética. Para o Autor, a metáfora não é apenas uma “rotação de atributos à volta da mesma substância”, mas uma translação do próprio pensamento. Em António Telmo as palavras procuram-se sempre noutras palavras mais subtis – recordemos, neste sentido, que o seu livro de estreia, no já recuado ano de 1963, se chamava justamente Arte Poética e apontava para o entendimento do pensamento a partir da poesia ou, o que vem a dar ao mesmo, da Kabbalah. A possibilidade de substituir esta pela palavra poesia não nos deve surpreender: basta sabermos que a Kabbalah é uma forma específica de encarar a linguagem verbal humana, onde o signo linguístico não é arbitrário e convencional, mas sim natural e não-contratual.
Os estudos dedicados no presente volume à poesia de Teixeira de Pascoaes, de Fernando Pessoa e de Camões partem desta perspectiva de translação do sentido e do pensamento, e conseguem excelentes resultados. A leitura do célebre e conhecido soneto “Gomes Leal” de Fernando Pessoa é, sob este aspecto, esclarecedora. António Telmo lê o título do poema como um disfarce ou termo de substituição. Pondo lado a lado o soneto e o horóscopo de Fernando Pessoa, acaba por chegar à conclusão de que o título do poema encobre afinal um auto-retrato do próprio autor. Esta original leitura é um feliz exemplo de como a translação do sentido e do pensamento pode obter excelentes resultados. Também a translação do som – técnica muito antiga, que já Sócrates aconselhava a Hermógenes no Crátilo de Platão – pode alcançar sucessos semelhantes. Assim, quando lê Adamastor como Adão Astral (o Adam Astor) António Telmo estabelece, por translação de som, uma curiosa e original interpretação desse nome e, por consequência, do passo onde ele se encontra. Já Fernando Pessoa, segundo informação do autor de Arte Poética, era exímio praticante do mesmo tipo de exercícios interpretativos, podendo por exemplo o título Mensagem ser lido e interpretado a partir da expressão latina Mens Agitat Molem (cf. p. 168). 
Num livro sobre Sampaio Bruno, Joel Serrão refere a seu propósito a existência de dois tipos de fontes, as quais nos parecem poder ser extensivas à totalidade da cultura dum país ou duma língua. As fontes exotéricas são as mais conhecidas e aquelas que, pela facilidade de acesso, dominam o gosto e a moda da época. Pelo contrário, e apesar de resumirem muitas vezes o essencial não só do que passa mas do que permanece, as fontes esotéricas são de aceso difícil, pois requerem um saber operativo: só um escol culto e interessado parece ter conhecimento delas. Nos últimos trinta ou quarenta anos os estudos mais conhecidos sobre a poesia portuguesa clássica ou contemporânea têm sido quase inteiramente dominados pelo uso exaustivo daquilo a que Joel Serrão chama fontes exotéricas – António Telmo é precisamente um dos hermeneutas que prestam atenção às outras fontes da nossa poesia.
O uso das fontes esotéricas tem a vantagem de aproximar o intérprete do texto e dos seus vários níveis de sentido. Além disso e apesar de usadas por um escol muito minoritário em relação ao conjunto da população, essas fontes parecem ser responsáveis por quase todos os momentos verdadeiramente marcantes da nossa poesia. A de Herberto Helder é ainda hoje um excelente exemplo da sua vitalidade actuante. Lembremos as suas palavras: “Meu Deus, faz com que eu seja sempre um poeta obscuro”, palavras que se podiam perfeitamente aproximar de algumas outras de António Telmo. O gosto de trasladar o sentido, tão característico da poesia de Herberto Helder, pode ser vantajosamente aproximado do gosto de trasladar o pensamento que caracteriza a filosofia ou a hermenêutica de António Telmo. Nenhum poeta estará assim tão próximo de António Telmo pois nenhuma poesia formula com tanta evidência aquilo que a filosofia de Telmo postula: a metáfora como instrumento de pensamento. Há neste paralelismo, o mais actual no nosso país entre Filosofia e Poesia, a certeza de que estamos ante um autor que, apesar da obscuridade a que se tem remetido, ou por causa disso mesmo, é dos mais importantes intérpretes da poesia portuguesa e um daqueles que, com mais proveito e originalidade, se movem hoje no campo da hermenêutica literária.
António Cândido Franco 
____________  
* Publicado em Colóquio/Letras, n.º 120, Abr. 1991, p. 227-228.

Armário


Hechal!!!




Freixo de Espada à Cinta

Hechal é para os judeus sefarditas o termo para o armário ou para a reentrância de uma parede, em direcção a Israel, onde se guardam os rolos da Torah (Sifrei Torah). Esta designação vem do Hebraico Palácio, expressão utilizada nas diversas épocas do Templo de Jerusalám, para se referirem ao santuário onde estava o Santos dos Santos.



Sabugal

Após 1496/97, para alguns historiadores como o Dr. Jorge Martins, entre outros, este tipo de construção geralmente em pedra granítica, estava situada em casas particulares, usadas como sinagogas clandestinas e espalhadas de norte a sul de Portugal, substituindo desta maneira os anteriores Aron Kodesh.



Castelo de Vide


Chamo a vossa particular atenção. Que após o decreto de expulsão, os rolos sagrados que sobreviveram aos assaltos das judiarias foram levados para fora do país, ficando alguns textos e outros manuscritos de categoria menor, possivelmente utilizados e guardados neste tipo de “arca”.



Caria

O facto que importa realçar, é que em quase todas as antigas judiarias deste país se pode encontrar este estilo de construção de pedra ou de madeira, onde alguns estavam escondidos por detrás de armários, cortinas ou paredes falsas, como ocorrido no Porto. 



Porto

Não sendo uma mera coincidência este dado, menos justificável é a defesa de alguns, de estarmos perante algo relacionado apenas e só à exposição de porcelanas e outras bugigangas de gosto duvidoso.



Malhada


Note-se no pormenor lindíssimo de como a pedra foi trabalhada em alguns desses "armários", e noutros, é curioso verificar que há marcas de cruzes, como que santificando o lugar. Estas marcas foram profusamente utilizadas pelos conversos e cripto-judeus, como símbolo da sua nova e assumida religião, ou então, para não levantar suspeitas a vizinhos e estranhos que pudessem aparecer nos seus lares.



Guarda



Fonte:

Sephard Jewish Heritage

quarta-feira, 24 de abril de 2013

A dream of her - Micah P. Hinson

Micah P. Hinson

amazing 

uma obra prima   »  A dream of her        (Please listen to the end )
   












Giuseppe Ungaretti


Pequena biografia: Giuseppe Ungaretti, filho de italianos da Toscana, nasceu em 10 de Fevereiro de 1888 em Alexandria, onde realizou seus primeiros estudos. Em 1912 visitou pela primeira vez a Itália a caminho de Paris. Estudou na Sorbonne, conheceu os movimentos de vanguarda e fez amizade com algumas das figuras mais importantes da cultura contemporânea, tais como Apollinaire, Gide, Max Jacob e Picasso. Em 1915-18, luta como soldado pela Itália na I guerra. Dessa experiência surge seu primeiro livro - "A Alegria" (1914-9). Em 1921 se estabelece em Roma, onde escreve "Sentimento do Tempo", obra realmente marcada pela consciência da temporalidade. Em 1936, muda-se para o BRASIL e ocupa a cátedra de Língua e Literatura Italiana na USP. Nesse período, morre seu filho Antonietto, de 9 anos, a quem dedica o livro "A Dor". Em 1942, retorna a Itália e lecciona na Universidade de Roma. Em 1950, mundialmente famoso, publica "A Terra Prometida". Morre em Milão em 1970, tendo organizado sua obra, "Vita d´un Uomo".

Sentimento do Tempo                                            

...E pela luz precisa,
apenas uma sombra violeta caindo
sobre o cume menos alto,
a distância aberta à medida,
cada pulsação minha à maneira do coração,
mas agora o escuto,
te apressa, tempo, a pôr-me sobre os lábios
os teus lábios últimos.
...                                                                                                                            

     A PIEDADE

  PRIMEIRA PARTE
...
Sou um homem ferido.
...
E me quisera ir
E finalmente chegar,
Piedade, onde se escuta
O homem só consigo.
...
Não tenho mais que soberba e bondade.
...
E me sinto exilado entre os homens.
...
Mas por eles padeço.
Não serei digno de voltar a mim?
...Povoei de nomes o silêncio....Fiz em pedaços coração e mente
Para cair na servidão das palavras?
...Reino sobre fantasmas.
...
Oh folhas secas,
Alma levada aqui e acolá...
...
Não, odeio o vento e sua voz
De besta imemorial.
...Oh Deus, aqueles que te imploram
Não te conhecem senão de nome?
...
Me desfizeste da vida.
...
Me desfarás da morte?
...
Talvez o homem é também indigno de esperar.
...
Mesmo a fonte do remorso está seca?
...
Que importa o pecado
Se já não conduz à pureza.
... ...
A carne se recorda apenas
De que outrora fora forte.
...
Está louca e gasta, a alma.
...
Deus, contempla a nossa debilidade.
...
Quiséramos uma certeza.
...
De nós sequer ris mais?
...
Compadecemos, crueldade.
...
Não posso mais estar murado
No desejo sem amor.
...
Mostra-nos um rastro de justiça.
...
Tua lei qual é?
...
Fulmina minhas pobres emoções,
Livra-me da inquietude.
...
Estou cansado de urrar sem voz.
...
                                                                      CARLOS BESEN TRADUZIU

terça-feira, 23 de abril de 2013

Fernão Mendes Pinto


PEREGRINAÇÃO


Frontispício da Peregrinação de Fernão Mendes Pinto, Lisboa, 1614


    Falar de Fernão Mendes Pinto é falar da Peregrinação, de tal forma homem e obra estão ligados. Pouco se sabe da sua vida, para além de que nasceu e morreu em Portugal, passou vinte e um anos na Ásia e escreveu um livro – Peregrinação -, publicado em 1614 (trinta e um anos após a morte do autor). 



Descobrimentos Marítimos Portugueses - Planisfério Cantino, 1502


    A vida de Fernão Mendes Pinto abrange quase todo o século XVI, uma época que foi palco tanto da gloriosa ascensão, como da decadência da nação portuguesa. Por altura do seu nascimento (1509?-1511?), o Império Português estava espalhado ao longo de uma linha que ia da costa do Brasil às da África Ocidental e Oriental, à Pérsia, à costa do Malabar na Índia, ao Ceilão e aos arquipélagos da Malaia e das Molucas. Quando Fernão Mendes Pinto morreu, em 1583, Portugal tinha perdido a sua independência, absorvido pelo império de Filipe II, rei de Espanha (Filipe I de Portugal). 

    Pensamos ser apropriado introduzir aqui duas peças musicais que ilustram, a primeira, o apogeu do Império Português no reinado de D. João III, e a segunda, a derrota do exército português em Alcácer-Quibir, comandado por D. Sebastião, que conduziria à perda da nossa independência: “Pardeos bem andou Castella” e “Puestos estan frente a frente”. 

     

Carlos V e Isabel de Portugal, retratados por Tiziano


“Pardeos bem andou Castella” é referida como uma “Portuguesa folia” na peça de Gil Vicente “Templo d’Apolo”, estreada na partida de D. Isabel de Portugal, filha de D. Manuel I, para Castela, quando casou com o Imperador Carlos V, em 1526. 

Pardeos bem andou Castela/pois tem rainha tam bela
(…)
Pardeos bem andou Castela/com toda sua Espanha
pois tem rainha tam bela/emperatriz d’Alemanha



Segréis de Lisboa – Música para o teatro de Gil Vicente – Pardeos bem andou Castela




D. Sebastião, retratado por Cristóvão de Morais, c. 1572-74


     “Puestos estan frente a frente” (romance) faz parte da obra “Miscelânea”, de Miguel Leitão d'Andrade, publicada em 1629; narra a Batalha de Alcácer-Quibir, ocorrida em 1578, na qual o rei português D. Sebastião perdeu a vida. 

Puestos estan frente a frente/Los dos valerosos campos
Uno es del Rey Maluco/otro de Sebastiano el Lusitano
(…)
Busca la muerte en dar muertes/Sebastiano el Lusitano
Diziendo ahora es la hora/Que “Un ben morir, tutta la vitta honora”



Gérard Lesne - O Lusitano:  Puestos estan frente a frente




     Fernão Mendes Pinto informa-nos logo no início da longa narrativa da sua peregrinação de que «(…) até à idade dos dez ou doze anos vivi na miséria e na estreiteza da pobre casa de meu pai na vila de Montemor-o-Velho (…)». Deduzimos que nasceu algures entre 1509 e 1511, conforme palavras do próprio ao afirmar que tinha dez ou doze anos quando morreu o rei D. Manuel I, no dia de Santa Luzia, a 13 de Dezembro de 1521. 

     A família de Fernão Mendes Pinto, embora pobre, será remotamente aparentada com os poderosos Mendes (Francisco e Diogo Mendes) de Lisboa e Antuérpia, cristãos-novos a quem a coroa portuguesa concedera o monopólio do comércio das especiarias, nos começos do século XVI. Talvez isto explique o tio que o levou para Lisboa e o colocou ao serviço de uma senhora da nobreza. Em 1523, o jovem Fernão Mendes Pinto vive em Setúbal ao serviço da casa do fidalgo Francisco de Faria e a partir de 1527 é moço de câmara na Casa de D. Jorge de Lencastre, Mestre da Ordem de Santiago e filho natural de D. João II. 




    É em 1537 que embarca para a Índia, tentando a sua sorte em terras do Ultramar. A partir daí, pelo espaço de vinte e um anos, Fernão Mendes Pinto vive aventuras que virá a descrever ao longo dos 226 capítulos da sua Peregrinação. Relata massacres terríveis, tendo muito provavelmente participado em alguns deles; diz-nos que foi escravo, soldado, negociante, embaixador, missionário, corsário… «fui treze vezes cativo e dezasseis vendido, por causa dos desaventurados sucessos que atrás no decurso desta minha tão longa peregrinação largamente deixo contados» (Cap. 226).



Portugueses no Japão, Biombo Namban, séc. XVI/XVII

     Nas suas andanças pela Ásia, viveu em Malaca, em Pegú (Birmânia) e no Sião. Depois, andou pelos mares da China em viagens de negócios e sabe-se que fez quatro ao Japão. Nesta fase da sua vida, que está relativamente bem documentada, há informação de que juntou uma fortuna considerável; é como negociante abastado que conhece S. Francisco Xavier na sua terceira viagem ao Japão, em 1551, tendo emprestado dinheiro àquele missionário para a construção da primeira igreja cristã em terras nipónicas. 


    Em 1554 decide regressar à pátria, mas enquanto permaneceu em Goa foi tomado de um fervor místico que o levou a doar grande parte dos seus bens à Companhia de Jesus, que o acolheu como noviço. Foi nestas circunstâncias que integrou uma missão evangelizadora ao Japão (totalmente custeada por si), que no entanto resultou em fracasso. 



Rua Direita em Goa, 1596, Jan Huygen van Linshoten


     Entre esta última viagem ao Japão e o regresso a Goa, em 1557, Fernão Mendes Pinto decide afastar-se da Companhia de Jesus, ao que tudo indica a seu próprio pedido e amigavelmente. Regressa a Portugal em 1558, era D Catarina rainha regente, e durante quatro anos e meio andou empatado na corte na expectativa de uma compensação pelos serviços prestados à Coroa. Vendo as suas pretensões frustradas, retira-se para uma pequena propriedade que possuía no Pragal, perto de Almada; casou, constituiu família, e entre 1569 e 1578 escreveu a sua Peregrinação. Morreu em 1583, apenas três meses depois de ter recebido o modesto estipêndio da Coroa, em reconhecimento dos serviços prestados a Deus e ao Rei. 




    Parece ser intencional, e não por acidente, que Fernão Mendes Pinto omite aspectos da sua vida na Peregrinação; sob a aparência de um romance de aventuras onde é difícil separar o real do imaginário, a obra revela-nos uma crítica à sociedade do seu tempo, uma denúncia às atrocidades cometidas, hipocrisias e falsa religiosidade, que Fernão Mendes Pinto testemunha, embora de forma indirecta, por razões tão evidentes como a Censura e a Inquisição.

     A ideologia da Cruzada foi a força unificadora mais importante da história de Portugal na época dos descobrimentos. Mas essa ideologia era marcada por uma intolerância a que o autor dePeregrinação foi profundamente sensível, como podemos constatar nos exemplos que se seguem: 


Palavras de um menino raptado a seus pais, e que os portugueses captores tentavam doutrinar:

— Sabeis porque vo-lo digo? Porque vos vi louvar a Deus despois de fartos, com as mãos alevantadas e com os beiços untados, como homens que lhes parece que basta arreganhar os dentes ao céu sem satisfazer o que têm roubado; pois entendei que o Senhor da mão poderosa não nos obriga tanto a bulir com os beiços, quanto nos defende tomar o alheio, quanto mais roubar e matar, que são dous pecados tão graves quanto despois de mortos conhecereis no rigoroso castigo de Sua divina justiça. (Cap. 55)

Palavras dos tártaros acerca do procedimento dos portugueses:

— Conquistar esta gente terra tão alongada da sua pátria dá claramente a entender que deve de haver entre eles muita cobiça e pouca justiça.

A que o velho, que se chamava Raja Bendão, respondeu:

— Assim parece que deve ser, porque homens que por indústria e engenho voam por cima das águas todas por adquirirem o que Deus lhe não deu, ou a pobreza neles é tanta que de todo lhes faz esquecer a sua pátria, ou a vaidade e a cegueira que lhes causa a sua cobiça é tamanha por ela negam a Deus e a seus pais. (Cap. 122)



Rua Direita em Goa, (detalhe) 1596, Jan Huygen van Linshoten


    Durante os vinte e um anos que viveu na Ásia, Fernão Mendes Pinto teve uma vida activa, recheada de aventuras e, porventura, alheada das restrições políticas e religiosas que estavam a ser gradualmente impostas na sua pátria. 

    Por outro lado, o contacto estreito com as religiões asiáticas, tradicionalmente tolerantes, ter-lhe-á permitido amadurecer ideias e atitudes. Na sociedade multirracial da Índia portuguesa, é possível que tenha estabelecido contactos com o Judaísmo, através da antiga comunidade judaica que ali se radicara muito antes da chegada dos portugueses. 

    De uma forma ou de outra, Fernão Mendes Pinto chegou a uma filosofia que se fundamenta na moral dos Dez Mandamentos; crê no princípio do livre arbítrio, na assunção da responsabilidade pelos próprios actos; rejeita o mito do deus da tribo que aceita quebrar os seus próprios mandamentos e a prática de actos imorais contra membros de uma qualquer sociedade, independentemente da sua raça, credo ou cor. 

  Podemos assim concluir que a Peregrinação é, antes de mais, um apelo à tolerância racial e religiosa. 



Arte indo-portuguesa, Goa, Nª Senhora da Palma, (detalhe) séc. XVII


     Terminamos este artigo com um exemplo musical que é fruto do cruzamento de duas culturas: a portuguesa e a indiana. Trata-se da canção mariana Senhora del mundo (que Gil Vicente incluiu no seu Auto da Feira, representado “ás matinas do Natal, na era do Senhor de 1527”), numa interpretação da saudosa Montserrat Figueras, acompanhada por saltério e instrumentos musicais indianos. 



“…a mágoa que eu tenho de ver o muito que por nossos pecados nesta parte perdemos e o muito que pudéramos ganhar…”

Fernão Mendes Pinto


Notas:
1 - O Planisfério Cantino é uma carta náutica que representa os descobrimentos marítimos portugueses. Deve o seu nome a Alberto Cantini, que a obteve clandestinamente em Lisboa, em 1502, para o seu empregador, Ercole I d’Este, duque de Ferrara.
2 - Carlos V e Isabel de Portugal são pais de Filipe II de Espanha (I de Portugal) e avós de D. Sebastião.