sábado, 15 de junho de 2013

spiritus ubi vult spirat

Tudo começa e tudo termina.
A vida cumpre o seu ciclo do nascimento à morte. Mas a morte, creio, é transformação.
Foi Fernando Pessoa que escreveu este verso sublime: "Neófito, não há morte".
Este blog começou. E fecha agora as suas portas.

Escrevi no dia 25 de Novembro de 2012:
Estou agora a chegar aqui.
Não tenho um plano preconcebido do que este caderno irá ser. (...)
Será o que será.
Um lugar onde o verbo possa soprar
(spiritus ubi vult spirat) (...)
É um caderno de vozes, múltiplas, autónomas.
A minha incluída."

Pretendi que assim fosse, mas não sei se o consegui. Vós, meus leitores, fostes fazendo a vossa apreciação e o vosso juízo do que aqui coloquei. Agradeço a todos os que passaram por aqui,
tenham ou não deixado rasto da vossa passagem.
Agora é hora de terminar este blog, porque me sinto cansado e porque a experiência foi positiva
mas se esgotou. A todos o meu obrigado.

Talvez volte noutra altura...



sexta-feira, 14 de junho de 2013

Vinícius de Moraes



Senhoras e Senhores, Vinícius de Moraes:

"A maior solidão é a do ser que não ama. A maior solidão é a dor do ser que se ausenta, que se defende, que se fecha, que se recusa a participar da vida humana.

A maior solidão é a do homem encerrado em si mesmo, no absoluto de si mesmo,
o que não dá a quem pede o que ele pode dar de amor, de amizade, de socorro.

O maior solitário é o que tem medo de amar, o que tem medo de ferir e ferir-se,
o ser casto da mulher, do amigo, do povo, do mundo. Esse queima como uma lâmpada triste, cujo reflexo entristece também tudo em torno. Ele é a angústia do mundo que o reflete. Ele é o que se recusa às verdadeiras fontes de emoção, as que são o patrimônio de todos, e, encerrado em seu duro privilégio, semeia pedras do alto de sua fria e desolada torre."



quarta-feira, 12 de junho de 2013

13 de Junho, dia de Santo António

Santo António é o santo de Lisboa e dos portugueses, além de ser universal, se bem que não seja o padroeiro de Lisboa: esse é S. Vicente, mais antigo que Stº. António. Este foi companheiro de S. Francisco de Assis e viveu uma boa parte da sua vida em Itália, pelo que também é conhecido como Stº. António de Pádua (onde morreu). 
Na noite de hoje, dia 12 de Junho, Lisboa e outras localidades do País estão engalanadas em festa em sua honra. O santo é, talvez o português mais conhecido em todo o mundo, ainda que alguns não saibam que ele era português.

                        
  Bento XVI em catequese sobre o santo português, um dos «mais populares de toda a Igreja Católica»

D.R.

Lisboa, 13 Jun 2012 (Ecclesia) – Santo António de Lisboa, nascido no século XII, é uma das figuras “mais populares” da Igreja e mereceu a atenção de Bento XVI numa das suas catequeses semanais, a 10 de Fevereiro de 2010.

“Trata-se de um dos santos mais populares de toda a Igreja Católica, venerado não só em Pádua, onde foi construída uma maravilhosa Basílica que conserva os seus despojos mortais, mas em todo o mundo. São queridas aos fiéis as imagens e as imagens que o representam com o lírio, símbolo da sua pureza, ou com o Menino Jesus no colo, em recordação de uma milagrosa aparição mencionada por algumas fontes literárias”, disse então o Papa.

Ainda em Portugal, Fernando, que viria a assumir o nome de António, foi recebido entre os Cónegos Regulares de S. Agostinho em Lisboa e Coimbra, mas pouco depois da sua ordenação sacerdotal ingressou na Ordem dos Frades Menores [Franciscanos], com a intenção de se dedicar à propagação da fé entre os povos da África.

O santo português, que morreu em Pádua, Itália,  no ano de 1231, foi o primeiro professor de teologia na ordem fundada por São Francisco de Assis, tendo ficado famoso pelos seus sermões.

Para o actual Papa, “António contribuiu de modo significativo para o desenvolvimento da espiritualidade franciscana, com os seus salientes dotes de inteligência, equilíbrio, zelo apostólico e, principalmente, fervor místico”.

Na sua catequese, Bento XVI falou num “ensinamento muito importante também hoje, quando a crise financeira e os graves desequilíbrios económicos empobrecem não poucas pessoas, e criam condições de miséria”.

“António convidou várias vezes os fiéis a pensar na verdadeira riqueza, a da cruz, que tornando bons e misericordiosos, faz acumular tesouros para o Céu”, recordou.

Bento XVI destacou ainda “uma actividade apostólica tão intensa e eficaz” na Itália e na França que “induziu muitas pessoas que se tinham afastado da Igreja a reconsiderar a sua decisão”.


O Papa Gregório IX canonizou-o  apenas um ano depois da morte, em 1232, também após os milagres que se verificaram por sua intercessão.

Pio XII, em 1946, proclamou Santo António como “Doutor da Igreja”, atribuindo-lhe o título de "Doutor evangélico".






Um outro video sobre Santo António 

produzido por ocasião do 8º centenário do nascimento de Santo António (1195 - 1995):


http://youtu.be/xWGVXxQ38h4









Memória da pesca da baleia ao largo da costa portuguesa


A caça à baleia
20 anos atrás, ainda se caçava a baleia no mar de Sesimbra. Para se poder assistir, assinava-se um termo de compromisso:
– Responsabilizo-me pela minha morte.
Isto de uma criatura de Deus se responsabilizar pela própria morte só no mar, onde toda a gente é livre, livre como os longos horizontes e o infinito que há neles.
Eu fui dos que assistiram a uma caçada à baleia. Um barco a motor, do tamanho dum cacilheiro, um canhão à proa, toda a tripulação atenta ao grito que vinha do cesto da gávea lá no alto do mastro:
– Baleia a bombordo!
– Baleia a estibordo!
E o barco mudava de rumo para onde a voz o mandava, um rumo que incidia no vértice dum ângulo de que ele era uma das linhas e a outra o esfumegar constante da baleia. Encontravam-se matematicamente no vértice desse ângulo, barco e baleia.
A tripulação parava de respirar, olhos postos na grande massa escura que aparecia, desaparecia, reaparecia, grande força rítmica como a do próprio mar obedecendo à energia misteriosa que faz as marés. O profeta Jonas comparou a baleia ao abismo. No ventre desse abismo esteve três noites e três dias, tantos como Cristo nos infernos. A baleia é, de facto, a força do abismo em movimento.
Ao meu lado estava um pescador, de agudo perfil hebreu, que, devo dizê-lo, me estava a interessar muito mais do que a baleia. Sentia, não sei porquê, que esse homem, repassado de mar e tempestade, estava ali completamente indiferente ao êxito da caçada.
– Já caçou muitas baleias? Perguntei-lhe.
– A minha mulher, senhor. Gorda como uma baleia, que me engoliu em vida como ao profeta Jonas e me faz andar aqui a arranjar sustento para os filhos.
Aquele homem era um humorista, sério como todos os humoristas, humorista como todos os portugueses que pelo riso se vingam da rotina miserável dos dias. Ao ouvi-lo, nem sequer reparei que a baleia se tinha escapado, antes que o arpão partisse, mergulhando na profundidade das ondas, para não mais aparecer. Era só mar de novo, extenso e interminável, que o homem do cesto da gávea perscrutava a bombordo e a estibordo, de olhar atento e veloz como o de uma ave de rapina…
A. T.

terça-feira, 11 de junho de 2013

M. Hermínio Monteiro e Camilo Pessanha

Manuel Hermínio Monteiro — 10/09/1952 - 03/06/2001


Há muitos e muitos milhares de anos, a poesia aproximou-se do homem e tão próximos ficaram, que ela se instalou no seu coração. E começaram a ver o mundo conjuntamente estabelecendo uma inseparável relação que perdurará para sempre. Não demorou muito a que a poesia se emancipasse, autonomizando-se. Como uma rosa de cujas pétalas centrípetas emana a beleza e o mais intenso perfume, sem nunca prescindir da defesa vigilante dos seus espinhos, assim cresceu livre a poesia carregada de silencioso mistério e sedução.
Evitou sempre a vaidade. Mas o vento da história, inapercebidamente, por vezes, demorou-se nela libertando o seu perfume, soltando os seus enigmas, fazendo-a avançar com todo o esplendor. E nada existe que a poesia não tenha experimentado, desde o mais recôndito silêncio do deserto, ao fragor das batalhas mais sangrentas. Da mais humilde das intimidades, ao luxo sinuoso do palácio. Com o tempo, e já depois da comunhão primordial, era o homem, por necessidade de uma comunicação maior, que a procurava e lhe abria o coração, até que ela, muito discretamente, voltava a estremecer no seu sangue.
Poesia e homem criaram assim uma cúmplice e indissociável relação por todo o mundo, embora a História pouco se tenha disso apercebido. Hoje sabemos que haverá sempre seres humanos que a reconhecem pela substância do seu silêncio. Pelo tempo e lugar do seu rigor de ave de arribação. Pelo seu fulgor. Pelo seu perfume. Pela riqueza inesperada das suas sugestões. Com um pequeno gesto os poetas soltam o seu pólen que, levado pelas palavras vai eternamente fecundando os arcos da beleza que erguem o universo e o põem em comunicação com Deus.

Manuel Hermínio Monteiro na sua introdução ao livro «Rosa do Mundo — 2001 Poemas para o Futuro». 


CAMILO PESSANHA ( 7 de Setembro de 1867 - 1 de Março de 1926 )



AO LONGE OS BARCOS DE FLORES

Só, incessante, um som de flauta chora,
Viúva, gracil, na escuridão tranquila,
— Perdida voz que de entre as mais se exila,
— Festões de som dissimulando a hora.

Na orgia, ao longe, que em clarões cintila
E os lábios, branca, do carmim desflora…
Só, incessante, um som de flauta chora,
Viúva, gracil, na escuridão tranquila.

E a orquestra? E os beijos? Tudo a noite, fora,
Cauta, detém. Só modulada trila
A flauta débil… Quem há-de remi-la?
Quem sabe a dor que sem razão deplora?

Só, incessante, um som de flauta chora…

Camilo Pessanha in «Clepsydra» (posfácio e fixação do texto de António Barahona)


VÉNUS
II 
Singra o navio. Sob a água clara 

Vê-se o fundo do mar, de areia fina... 
_ Impecável figura peregrina, 
A distância sem fim que nos separa! 
Seixinhos da mais alva porcelana, 
Conchinhas tenuemente cor de rosa
Na fria transparência luminosa 
Repousam, fundos, sob a água plana. 
E a vista sonda, reconstrui, compara, 
Tantos naufrágios, perdições, destroços! 
_ Ó fúlgida visão, linda mentira! 
Róseas unhinhas que a maré partira... 
Dentinhos que o vaivém desengastara... 
Conchas, pedrinhas, pedacinhos de ossos..

Camilo Pessanha, in 'Clepsidra'

segunda-feira, 10 de junho de 2013

Camões, início dos "Lusíadas"

OS LUSÍADAS  no Dia de Camões, de Portugal e das Comunidades Portuguesas, 10 de Junho

CANTO PRIMEIRO                                                                                      

AS armas e os Barões assinalados
Que da Ocidental praia Lusitana
Por mares nunca de antes navegados
Passaram ainda além da Taprobana,
Em perigos e guerras esforçados
Mais do que prometia a força humana,
E entre gente remota edificaram
Novo Reino, que tanto sublimaram;

E também as memórias gloriosas
Daqueles Reis que foram dilatando
A Fé, o Império, e as terras viciosas
De África e de Ásia andaram devastando,
E aqueles que por obras valerosas
Se vão da lei da Morte libertando,
Cantando espalharei por toda parte,
Se a tanto me ajudar o engenho e arte.

Cessem do sábio Grego e do Troiano
As navegações grandes que fizeram;
Cale-se de Alexandro e de Trajano
A fama das vitórias que tiveram;
Que eu canto o peito ilustre Lusitano,
A quem Neptuno e Marte obedeceram.
Cesse tudo o que a Musa antiga canta,
Que outro valor mais alto se alevanta.

(...)

Um texto de Manuel Jorge Marmelo

Abarcar o mundo com as pernas


Assisti ontem, no âmbito do LeV, em Matosinhos, a mais um debate no qual se discutiu o famigerado Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa. Sendo alguém que nunca precisou de acordo para entender o português do Brasil ou o português do Mia Couto (que justamente acaba de vencer o Prémio Camões — parabéns!), para citar apenas dois exemplos deliciosos de variantes da língua em que comunicamos, também tenho uma posição difícil de sustentar nesta matéria: não tenho nada contra um acordo abstracto, mas chocam-me inúmeros exemplos concretos do acordês. Tenho optado, por isso, por escrever na língua que aprendi e que me parece razoável, muito melhor, em todo o caso, do que o idioma dos espetadores, da receção e quejandos (vocábulos que o meu computador, aliás, nem sequer reconhece como palavras).
                                                                                                          

Mais do que valorizar aquilo que separa os falantes do português (matraquilho ou pimbolim, gabarito de prova ou enunciado de exame, comboio ou trem, autocarro ou ônibus), sempre me encantaram sobretudo as belas coincidência e encontros que a nossa língua proporciona. Já contei, em tempos, a emoção que senti quando, no Brasil, conversei em português com um indígena com o rosto coberto por pinturas de guerra, ou como a recordação do falar da minha bisavó materna foi um auxílio fundamental para poder ler o Grande Sertão: Veredas, do Guimarães Rosa. Há dias ganhei mais um exemplo para a colecção de coisas belas da minha língua: lendo o S. Bernardo do brasileiro Graciliano Ramos, encontrei na narração de Paulo Honório a expressão "abarcar o mundo com as pernas", sinónimo de grande ambição. Li-a e imediatamente me lembrei da minha avó materna e da minha mãe, que tantas vezes utilizam a bela expressão que infelizmente se foi perdendo — num romance do Brasil e sem acordo nenhum.

domingo, 9 de junho de 2013

«Oração» de Leonardo Coimbra

Oração

Eu adoro e temo o senhor meu Deus, porque Ele é doce e terrível.

Só Ele é: e tudo quanto existe assenta na sua mão poderosa.

Ele espalhou os mares sobre a face da terra e arremessou as montanhas para as alturas dos céus.

Ele pode apertar em sua mão, aniquilando-os, os mundos que uma vez dispersou pelo Espaço.

A voz do trovão e do relâmpago, os claróes da terra incendiada, as lavas que vomitam as feridas da terra, os ventos galopando cortantes, a terra tremendo em seus alicerces e os mares expulsos de seus leitos não custam um estremecimento à sua tranquilidade terrível.

Ele manda, e, no Espaço, os mundos chocando-se fazem um formidável dilúvio de fogo; Ele manda e dos mais profundos pélagos surgem os dorsos corcovados dos planetas; Ele manda e essas mesmas montanhas são poeira tombando de seus alicerces de granito.


O tufão cresce, avança sobre nós, torna em seus invisíveis braços as árvores mais gigantes e arranca-as como penugem de andorinha adormecida; sopra e das casas desmoronadas fogem espavoradas as cinzas do último fogo que reunira a família. Mas o tufão cresce ainda e não são os alicerces dos planetas que estremecem, é o Sol, imensa fornalha ardente que vomita farrapos de fogo maiores que os próprios mundos...

Cresce ainda e não são as cidades da terra e os seus milhões de habitantes que tombam à cólera de seu sopro, e não é o Sol que abre em chaga formidável seu manto de fogo, são os sóis, as nebulosas, os lumes e as monstruosas trevas do Espaço que se chocam e comovem levadas em seu sopro como o cadáver da gaivota na onda da tempestade.

Meu Deus, meu Deus, como é terrível a força do teu braço, como é terrível o assopro da tua cólera.

Não são os montes que saltam em suas bases de rocha, são os mundos que flecham em suas órbitas transviadas.

O caminho passa e quem sabe de que mundos mortos é a poeira que se lhe prende nos cabelos. Os pés do peregrino pisam na terra poeira de mundos mortos, apagados nas densas estepes das alturas.

A criação ri e o raio que lhe doira os cabelos e afeiçoa a boca é uma gota de sangue do nosso melhor Sol agonizante, e ó quantas faces cadavéricas, quantos mundos sem vida já não beijou essa gota de sangue que nos chega agora a cintilar oiro num sorriso de criança?

Meu Deus tua força é terrível e a cólera de teus olhos é mais cortante que o gume duma espada num campo de batalha!

O trovão que nos estala sobre a cabeça é um eco amortecido da tua voz justiceira, a língua de fogo que repassa e funde as rochas e os metais mais fortes é o reflexo apagado do teu olhar ardente"

Caim matando Abel
Onde esconderá Senhor sua cabeça pecadora o homem que teu olhar procure?

- Caim, Caim, que é de teu irmão Abel?

E onde se sumirá Caim de ante a tua face?

Os mundos estão na palma da tua mão, diante de tuas pupilas ardentes.

Mas não são eles, os mundos, obra da tua vontade soberana, não és o senhor deles?

Quem pode pôr barreiras no campo que te pertence? Não terá o oleiro o direito de partir, amassar e reamassar os barros que amodelou?

Os mundos são teus que neles se faça a tua indomável vontade misteriosa.

Mas as almas, Deus meu?

Flores do teu jardim que tua mão semeou na vida e que tua mão vem colher tão cedo...

Que vem fazer a Morte, que é esta vida , às sementes da vida eterna que são as almas?

Ascender na podridão a beleza desse instante?

A simples fosforescência no monturo?

Meu Deus, meu Deus, como são terríveis os caminhos da tua vontade!

E as sementes que são colhidas mal iam desenovelando a morte das criancinhas?

Que estranho cacto vermelho não será a chaga dum coração materno!

As crianças morrem para Deus ter anjos e os corações maternos ficam chagas de luz a gritar no Espaço!

Os mundos que são obra da tua mão omnipotente não te conhecem, ó que importa, pois que os arremesses num ou noutro sentido?

Mas as almas, meu Deus, conhecem-te e conhecem-se; ó para quê semear almas e vir colhê-las antes que abram, para reunir corações e dispersar cadáveres? 

(in Miguel Spinelli, «A Filosofia de Leonardo Coimbra», Braga, 1981, pp. 271-273).

sexta-feira, 7 de junho de 2013

Leitores



Marilyn Monroe

Sean Connery
[ William Faulkner ]
Maria Keil
Os três macacos leitores

[ Charlotte Greenwood ] 1928


quarta-feira, 5 de junho de 2013

2 Poemas de Georg Trakl

Georg Trakl

No Outono

Junto à cerca, os girassóis e o seu brilho,
Doentes sentados ao sol, sem alento.
No campo, as mulheres cantam no trabalho,
Ouvem-se ao longe os sinos do convento.

Os pássaros contam lendas de encantar,
Ouvem-se ao longe os sinos do convento.
Há um violino no pátio a gemer.
E já o vinho escuro vão recolhendo.

Todos parecem felizes, libertos,
E já o vinho escuro vão recolhendo.
Os jazigos dos mortos estão abertos,
Pintados pelo sol que vai entrando.


em A Alma e o Caos - 100 poemas expressionistas, selecção, tradução, introdução e notas de João Barrento, Lisboa: Relógio D' Água, 2001, p. 223.


NASCIMENTO

Montanhas: negridão, silêncio, neve.
Vermelha, a caçada sai da floresta;
Oh! O musgoso olhar do animal .

O silêncio das mães; debaixo dos abetos negros
Abrem-se as mãos adormecidas,
Quando, em ruínas, a lua aparece.

Oh! O nascimento do Homem. Nocturna, a água azul
Rumoreja ao fundo do penhasco.
Suspirando, o anjo caído vê o seu rosto.

Uma palidez acorda no quarto embotado.
Duas luas
Iluminam os olhos da velha empedernida.

Ó aflição! O grito do parto. Com asas negras
A têmpora do rapaz encosta-se à noite,
Neve que suavemente cai das nuvens purpúreas.


De Caspar David Friedrich


segunda-feira, 3 de junho de 2013

Agostinho da Silva, pequena biografia de Rui Lopo

 “O homem não se fez para trabalhar, mas para criar”            
                                                               Agostinho da Silva
Agostinho da Silva (1906-1994) nasce no Porto, cidade onde frequenta o liceu e a Faculdade de Letras, estudando Filologia Clássica e dedicando-se à tradução de clássicos gregos e latinos. Adere ao movimento portuense das Universidades Populares. No final da década de Vinte é bolseiro em Espanha onde estuda mística espanhola (e se reúne com os exilados políticos portugueses) e em França onde estuda Montaigne.
De regresso a Portugal dedica-se à causa da renovação dos métodos pedagógicos, introduzindo as correntes de vanguarda da Escola Nova e levando à prática um ambicioso e intenso plano de divulgação científica e cultural entre os mais novos e os mais carenciados, afrontando um regime elitista e autoritário. Em 1935 recusa a obrigação de jurar a Constituição imposta aos professores e demais funcionários públicos pela Ditadura sendo, em consequência, proibido de ensinar e passando a viver de aulas particulares e da venda dos seus escritos (traduções de clássicos, biografias de homens exemplaresCadernos Iniciação e À Volta do Mundo, este dirigido aos mais novos), entre os quais, “O Cristianismo” (1942) e a “Doutrina Cristã” (1943), que contribuirão para aumentar a sua perseguição política e precipitar a sua prisão. Este período foi ainda marcado pelo cultivo e ensino do Esperanto e pela abundante participação em jornais, revistas e círculos culturais em todo o país.
Em 1944 reúne em livro, em edições de autor, grande parte da sua produção literária e ensaística e parte para a América do Sul, para a Argentina e o Uruguay e depois para o Brasil, onde viverá até 1969. Após um primeiro período em que estuda biologia, especializando-se em entomologia, dedica-se ao ensino universitário, participando da criação de Universidades por todo o Brasil. Passa então a ter também a cidadania brasileira. É neste período que retoma o estudo da literatura portuguesa que começa a ensinar, interessando-se pela religiosidade popular e pela tradição mito-poética dos povos de língua portuguesa, reinterpretando símbolos culturais, lendas e mitos numa perspectiva emancipatória e progressista.
Na década de 50 cria diversos centros de estudos e outros grupos organizados que visavam firmar o intercâmbio entre o Brasil, África e o Oriente, estabelecendo diversas parcerias culturais, especialmente com o Senegal, de Léopold Senghor. Com o início da guerra em África, começa a propor, a partir do Brasil, a criação futura de uma Comunidade de Povos de Língua Portuguesa, que superasse o colonialismo.
A partir de 1964, com o começo da ditadura militar no Brasil, Agostinho efectua diversas viagens, a Moçambique, aos Estados Unidos e ao Japão, ensinando e colhendo informações que depois utilizará em seus escritos ensaísticos e literários.
Desdobra-se em vários heterónimos, à imagem de Fernando Pessoa, sobre quem tanto escreveu, servindo-se de um deles, Mateus-Maria Guadalupe para redigir as suasLembranças sul-americanas sob a forma de novelas.
Em 1969 Agostinho regressa a Portugal, convicto de que o regime não duraria muito mais. Mantém uma enorme rede epistolar, colocando-se no centro de um constante intercâmbio de ideias e projectos que reunia centenas de pessoas de várias formações culturais, políticas e religiosas em todo o mundo, a todos enviando as suas edições de autor e as suas cartas-circulares que se articulam em obras grandiosas que incluem poesia, aforismo filosófico, comentário político, divulgação pedagógica e tradução (Agostinho traduziu dezenas de obras de mais de dez línguas diferentes).
A partir de 1974, com a Revolução dos Cravos e a instauração da Democracia em Portugal, Agostinho da Silva irá ser visto cada vez mais como uma voz inconformada de intelectual rebelde e desconcertante, conhecendo nos últimos anos da sua vida uma enorme popularidade que utiliza para abalar as ilusões confortáveis da sociedade de consumo e as certezas falsas da cultura dominante, respondendo com paradoxos às perguntas simplistas que lhe dirigem, assumindo despojadamente a imprevisibilidade como metáfora por excelência do divino e a criatividade como o valor mais humanizante do ser humano.
                                                                                       “Vai sendo o que sejas até seres o que és”
                                                                                              A.S.
 Rui Lopo