domingo, 28 de setembro de 2014


Um poema de Wu Ki



O cavalo sedento bebe de qualquer água,
o pássaro faminto come de qualquer grão.
Ao homem novo e forte que a miséria acossa,
que outra cousa lhe resta senão tornar-se bandido?


em Mesa de Amigos, versões de poesia por Pedro da Silveira, Lisboa: Assírio & Alvim, 2002, p. 35.

quarta-feira, 24 de setembro de 2014

Um Blog

Arte e Melancolia
 
O pintor está à esquerda do quadro de cabeça baixa, o braço esquerdo apoiado na cadeira, as pernas cruzadas, a tela em branco. Um mundo absolutamente sem vida está diante dele: sua própria tela. De suas costas sai um exército de criaturas humanas, quase todas armadas de lanças e punhais, crianças, homens, velhos. Esse batalhão luta, mas é atingido, enfrenta, mas é impedido, e à medida que o olhar caminha para o centro da imagem, a força da tropa se reúne e se dispersa ao mesmo tempo. Vemos as figuras perto de uma grande janela serem como que rebatidas por outra força, uma força cuja imagem se apóia no outro lado do parapeito, a mão direita próxima ao rosto coberto, a mão esquerda a empurrar uma das janelas de vidro: a imagem dessa força está toda vestida de negro. Melancolia é o nome da pintura do polaco Jacek Malczewski.

Jacek Malczewski, Melancolia, 1890-1894

Melancolia em grego quer dizer literalmente bílis (cholé) negra (mélas). Há uma tradição desde Hipócrates (460-377 a.C.) que pensa esse fenómeno tanto físico quanto psíquico: “Se tristeza e medo duram muito”, escreveu o médico, “tal estado é melancólico”. Em tal teoria médica, a saúde ou a doença dependeriam do equilíbrio ou desequilíbrio dos quatro humores: sangue, fleuma, bílis amarela e bílis negra. Um pouco mais tarde, Aristóteles diz ser a bílis negra um humor que altera do muito frio ao muito quente e vice-versa. E por ser inconstante a potência dessa mistura, inconstantes são os melancólicos, já que o humor frio geraria a tristeza e a apatia, ao passo que o humor quente produziria a loucura e a exaltação sexual. A constância dessa inconstância faria o homem de génio.
 E o Problema XXX de Aristóteles é se perguntar por que os homens de exceção são melancólicos. E melancólicos teríamos de entender não apenas tristes, mas impacientes, esquivos, temperamentais, violentos algumas vezes. A arte para o artista talvez seja o lugar de luta e acalento da melancolia, arte sem a qual sua vida e seu humor se tornam insuportáveis. No final do século XIX, Nietzsche fala de uma fisiologia da arte. O que importa saber é como dos humores do artista, e da luta entre seus instintos, acontece algo cujo significado se põe além do próprio artista como indivíduo humano, fadado a paixões e a ocupações da vida ordinária.
A Melancolia de Malczewski abre a janela para uma paisagem que parece outra pintura. Apenas alguns homens se aproximam da personagem de negro, mas mesmo esses homens,  que lembram sábios, profetas e religiosos, não chegam a tocá-la, nem tentam vencê-la. Somente um deles levita sem ser impelido. Está logo atrás da mulher vestida de negro: é uma exceção. Toda a luta contra a melancolia parece inútil. O mais sábio dos sábios talvez consiga, no máximo, manter uma proximidade que revela o reconhecimento da distância de forças: de um lado, a necessidade de meditar, de outro, a bílis que ao mesmo tempo entristece a alma e inquieta o corpo. A imagem da pintura mostra a luta na fronteira de uma obscuridade que não é apenas a do pintor em seu ateliê, mas a de nossa própria vida. Não escolhemos a melancolia. Ela é quem nos escolhe. Não pede licença, não avisa quando vem, nem quando vai embora. Podemos ocultá-la com centenas de distrações que o mundo cada vez mais oferece. Mas ela retorna mais insistentemente ainda, e mais forte do que esperávamos. E para aquele que pressente uma tarefa muito própria, como sua tarefa muito própria, não há escapatória. Terá de lutar menos contra a bílis negra do que com ela, acostumar-se a recebê-la em sua morada: é o caso do artista. 
“Sempre voltas, Melancolia, / Mansidão da alma solitária. / Por fim arde um dia dourado,” canta o poeta Georg Trakl em 1913 (De profundis, Iluminuras, 1994).

Giorgio De Chirico, Melancolia, 1912

Há outra pintura, feita em 1912, com a qual podemos aprender sobre melancolia. Uma estátua feminina no centro da cena: o cotovelo sobre um apoio, a mão junto à cabeça inclinada. Mais ao fundo, duas figuras que parecem distantes de um mundo quase inumano. Não sabemos se vão ou vem, mas vemos suas sombras se projetarem além da linha do prédio ao lado do qual passam. No pedestal da estátua vemos uma inscrição: Melanconia. A luz entra da esquerda para a direita na tela, um pouco inclinada, e vemos ainda a sombra de um pilar no primeiro plano, a sombra da estátua no centro e, entre uma e outra, uma sombra que não sabemos de quem seja. Apenas nos dá a impressão de estar à frente do pilar mais próximo. Nessa sombra talvez esteja todo o mistério da pintura. Ela descola nosso olhar para um lugar que encobre quem ali possa estar sem que possa ser visto. A melancolia da estátua depende dessa forma escura e, ao mesmo tempo, a silhueta de alguém nesse mundo estático contempla a estátua, cuja veste cobre uma dor que se volta para si, uma dor humana, aquecida por uma luz em alusão ao pôr-do-sol. É provável que estátua e sombra encontrem seus olhares no desassossego de uma única e mesma intimidade. A bílis negra é a sombra que a estátua reconhece e a estátua é a melancolia que a sombra pressente. O assombro de uma mesma duração: aqui a eternidade de uma tristeza, ao fundo, a passagem do tempo dos passantes, no instante de um pôr-do-sol.   Um ano após essa pintura, De Chirico escreve: “Para tornar-se imortal, uma obra de arte deve sair completamente dos limites do humano: a lógica e o bom senso só farão interferir. Desse modo ela se aproximará do sonho e da mentalidade infantil”.

Edvard Munch, Melancolia, 1895

                Em 1917, Freud escreve um belo ensaio chamado Luto e melancolia. Ambos os estados envolvem um longo trabalho interno para separar a libido do objeto perdido. No caso do luto sabe-se o que foi perdido, no caso da melancolia não, mesmo que o sujeito saiba quem tenha perdido. Um dos sintomas do melancólico é um intenso desprezo por si mesmo. “No luto, é o mundo que se torna pobre e vazio; na melancolia, é o próprio ego”. Na fronteira da doença, o melancólico pode estar bem próximo de compreender a si mesmo. Freud aprofunda muitas questões, mas poderíamos lhe perguntar como da pobreza e do vazio do ego nascem grandes obras de arte. Desinteressado de si e incapaz para a vida, pode o melancólico ocupar a força que lhe resta com algo ainda não feito no mundo, pouco importando o interesse alheio. Claro, o que faz a grande arte do artista não é pouco, mas são muitas as circunstâncias, a começar por sua obstinação de criar algo além da média menos ou mais medíocre. E nisso vai uma vida que, às vezes, vem precoce como a do poeta Rimbaud. Embora a intuição da poesia não exija tanta técnica quanto, por exemplo, a pintura o exige, as artes dependem de uma e outra, intuição e técnica. E no fundo de ambas, um silêncio que a todos nós pertence, muitos dele fogem, poucos o recebem, e menos ainda são o que transformam o incómodo de ser em obra de arte capaz de fazer alguma diferença para si, quando não para o mundo.
                Em nossos dias tendemos a negar o que aparentemente é negativo, tal como a melancolia. Mas não seria terrível um medicamento que nos deixasse sempre artificialmente bem, fossem quais fossem as circunstâncias? E se ao contrario de um sintoma de algo em falta ou anormal, a melancolia (ou a depressão ou a bipolaridade, nos termos médicos de hoje) for o princípio de uma nova força e a exigência de outra direção da vida à própria vida? Na história da arte, sem contar a expressão não figurativa, há várias imagens que mostram a melancolia tal como a extremamente simbólica de Albrecht Dürer (1471-1528) e a expressionista de Edvard Munch (1863-1968). Figuras que repetem a mão apoiada na cabeça quase sempre inclinada, como sinal de introspecção e afastamento do mundo. É curioso perceber como tais imagens também estão associadas à lembrança do pôr-do-sol. Um dos momentos mais belos de O pequeno príncipe é quando o narrador diz que compreende pouco a pouco aquela pequena vida melancólica. Diante de um pôr-do-sol, o pequeno príncipe conta ao amigo aviador que uma vez viu o sol se pôr quarenta e quatro vezes, seguidamente, já que no seu pequeno planeta bastava-lhe trocar a posição da cadeira para assistir tal espetáculo quantas vezes quisesse. “Tu sabes... quando se está assim triste a gente ama os pores-do-sol.” E o narrador lhe pergunta: “O dia das quarenta e quatro vezes tu estavas assim tão triste?”. Mas o pequeno príncipe não responde.

Dürer, Melancolia I

terça-feira, 23 de setembro de 2014

Dois Poemas de Nâzim Hikmet

Ao Partir


Ao partir, ficam-me coisas por acabar,
ao partir.
Salvei a gazela da mão do caçador
mas continuou desmaiada, sem recuperar os sentidos.
Colhi a laranja do ramo,
Mas não consegui tirar-lhe a casca.
Reuni-me com as estrelas,
mas não as consegui contar.
Tirei a água do poço
mas não pude servi-la nos copos.
Coloquei as rosas na bandeja,
mas não pude esculpir as taças de pedra.
Não saciei os meus amores.
Ao partir, ficam-me coisas por acabar,
ao partir.

Junho de 1959

Traduzido por Carlos Loures da versão castelhana de Fernando García Burillo dos "Últimos poemas 1959-1960-1961"  (Ediciones del oriente y del mediterráneo -Madrid 2000)



A Nogueira


Eu, cabeça, espuma, espuma, nuvens.
Mar, que, em mim adentro, em mim afora...
Sou a nogueira
do parque “Casa das Rosas”.
De nó  a nó, de lasca a lasca,
Velha e precisada,
E que ninguém, nem a polícia olha. 
A nogueira do parque “Casa das Rosas”.
Minhas folhas ágeis agem como peixe em água,
Minhas folhas finas, puras como lenços da mais fina seda,
Puras pelo ar.
Colhe, minha rosa, a idade de teus olhos.
Minhas folhas que são mãos, e tenho cem mil delas,
Bela, pra tocar-te, e toco-te com elas.
Tu e Istambul.
Minhas folhas, que são olhos, e olho em desvario,
Vejo-te com cem mil olhos,
Tu e Istambul. 
Cem mil corações, que batem, batem, batem...
Minhas folhas... 
Sou a nogueira do parque “Casa das Rosas”,
Que ninguém, nem a polícia olha. 

sexta-feira, 19 de setembro de 2014

As minhas três histórias preferidas da vida de S. Tomás de Aquino



S. Tomás de Aquino é um gigante teológico. As suas obras são imensas. O seu intelecto é incomparável. Era um filósofo profundo. Foi dos maiores exegetas bíblicos da Igreja. É raro o dia que passa em que eu não me refira às suas obras. No entanto, devemos lembrar que S. Tomás de Aquino foi um homem de enorme santidade. Tomás era um frade dedicado a santificar o seu trabalho diário. Para vos dar uma visão da sua vida santa, permitam-me partilhar três episódios que se destacam a este respeito.


Primeiro Episódio: O cinto angélico

Como sabem, a família de S. Tomás fechou-o na torre da família para o "dissuadir" de se tornar um frade dominicano. Eles queriam que ele se tornasse um Abade Beneditino. Deram entrada no seu quarto a uma prostituta e ele perseguiu-a com um tronco a arder (ver figura acima). O que se passou a seguir é impressionante. Com o tronco queimado ele desenhou uma cruz na parede do quarto e ajoelhou-se em veneração. Imediatamente dois anjos da pureza apareceram e colocaram um cinto angélico à volta da sua cintura. A partir deste dia ele nunca mais sofreu um pensamento ou acção de luxúria em toda a sua vida. Esta santa pureza é a chave para o enorme intelecto de S. Tomás.


Segundo episódio: Conversas com os Santos Pedro e Paulo

Os comentários de São Tomás às Epístolas de São Paulo são talvez os melhores de todos os tempos. Os seus comentários da Carta aos Romanos e Hebreus são do outro mundo. Poucos percebiam como é que São Tomás podia ter esta visão das Epístolas.

O secretário de São Tomás, Frei Reginald, ouvia-o às vezes a conversar com homens na sua cela. Quem eram estes homens misteriosos? Isto foi contado ao prior que ordenou sob santa obediência que São Tomás revelasse a natureza destas conversas.

Muito relutantemente, São Tomás revelou que São Pedro e São Paulo o visitavam na sua cela e explicavam-lhe o significado das suas palavras nas Epístolas! Não admira que São Tomás escrevesse comentários tão brilhantes! Ele estava a ser ensinado pelos próprios santos Apóstolos em relação ao seu significado.


Terceiro Episódio: A visão do dia de São Nicolau

Na festa de São Nicolau (6 de Dezembro) do ano antes de morrer, São Tomás teve uma visão enquanto celebrava o Santo Sacrifício da Missa. De seguida, contou a Frei Reginald que não ia continuar a escrever a sua Summa Theologiae, visto que tudo o que ele tinha escrito "parecia palha" comparado com o que tinha visto. O que é que ele viu naquele dia? Ninguém sabe. No entanto este episódio revela que São Tomás era um grande místico. Não se deixava levar pelo orgulho intelectual. Tinha um amor enorme e apaixonado por Cristo. Este tornava-se real no contexto da Sagrada Eucaristia.

Taylor Marshall




Saadi de Shiraz

Uma noite chorava eu amargamente minha vida desperdiçada, e decidi, enfim, renunciar aos prazeres absurdos e ao tempo perdido. Ficar sentado a um canto, surdo e mudo, vale mais que ser escravo de uma língua indomável. Veio um amigo e tentou levar-me para os prazeres da cidade, mas recusei. Disse-me ele, então:

"Saadi no jardim das rosas", iluminura do séc. XVII
Enquanto ainda possuis
O poder da palavra,
Utiliza-o no regozijo e na alegria!
Amanhã quando vier o anjo da morte,
Não terás outra escolha senão o silêncio.

Mais tarde fomos passear nos jardins. Ele colhia flores e eu lhe disse: “não há permanência nas flores; o que não dura não merece devoção. Ele perguntou: “O que devo fazer” Respondi: “Vou compor um livro, O jardim das Rosas, que não perecerá”.

Leva uma rosa do jardim,
Ela durará alguns dias.
Leva uma pétala do meu Jardim das Rosas,
Ela durará a Eternidade.


                                               )(


Perguntaram a um sábio: “Deus criou várias espécies diferentes de árvores e as fez carregarem-se de frutos e multiplicaram-se. Entretanto, nenhuma delas é chamada ‘livre’ como o cipreste. Qual a razão?” Ele respondeu: “Toda árvore floresce, dá frutos e seca segundo as exigências das estações, salvo o cipreste, que está sempre verde e fresco: tal é condição daquilo que é livre”.

Não ates teu coração a valores transitórios.
Por muito tempo depois dos califas,
O tigre continuará a correr em Bagdá.
Se podes, sê generoso como a tâmara;
Se não podes, então sê como o cipreste: livre.


(Traduções: Rosangela Tibúrcio, Beatriz Vieira, Sergio Rizek, a partir da versão de Omar Ali-Shah)

quinta-feira, 11 de setembro de 2014

Borges


A Argentina como o Chile representam no extremo sul do planeta a “Última Thule”. Borges (para o efeito não importa que esteja parcial ou inteiramente cego) trabalha ansioso com o terceiro olho, aquele que perfura qualquer distância. Não contempla apenas a ribeira no outro lado, mas também a terra mais distante. Fixará a vista interior em ilhas tão afastadas como a Islândia, a Última Thule do Setentrião romano. Pretende esgotar meridianos e paralelos. Empreende a travessia indagatória para as vizinhas do Árctico não por um puro exagero de auto-desterrado que se projecta no outro extremo, mas porque no globo terráqueo, que é redondo, todos os pontos fazem parte da cultura universal. A sereia que o chama e provoca é a palavra escrita, os textos cardiais, o entranhável, processo das línguas. Cruza os mares para averiguar a formação de idiomas. Dá crédito à notícia que os vikings (“uma multidão de cães que saíram da caverna de uma leoa barbara") chegaram às costas americanas séculos antes de Colombo. Mas anda também atrás das vagas de soldados da fortaleza romana e das tribos germânicas que demoliam limites e derrotavam legiões, traziam nas mãos a espada e na boca o poder de um rico verbo comunicativo. E foi por isso que ocupavam a Islândia, a Inglaterra, a Irlanda, a Alemanha e a Escandinávia.
O homem nascido na fronteira sul não será um marginal. Sente a atracção do centro e das margens opostas, das histórias de guerreiros que inspiram escritas e engedram poetas com ou sem nome. Faz isso com a consciência de que são herdeiras e várias literaturas europeias modernas. Apaixona-se pela evolução dos alfabetos e a odisseia das escrituras. Sente curiosidade pelos textos subjacentes na superfície dos palimpsestos. Não desconhece que se tratam de pergaminhos cuja escrita original foi apagada para estampar por cima outras diferentes mensagens. Tal fenómeno supressivo, essa operação de substituição e sobreposição dá-se também no caso das religiões triunfantes, que constroem as suas igrejas na base dos templos do vencido. Borges é um caso curioso de um estranho e apaixonado poliglota, amante da gramática histórica, do fluir das filologias, do nascimento obscuro, gradual, acumulativo e correctivo nos lábios dos povos das línguas do hemisfério norte e por que não também no seu próprio. Vidente ou cego embebe-se nos poemas mais antigos, na gesta de Beowulf, nas Eddas da Noruega, Gronelândia e Islândia. Deseja penetrar na trajectória de géneros literários com ressonâncias vindas de além mar, que continuam a transformar-se pela voz das gentes. Seduzem-no as Sagas, espécie de epopeias em prosa, nascidas no século X, recitadas no calor do vinho e dos banquetes por um rapsodo que geralmente celebra façanhas de homens de carne e osso. Na sua opinião, as Sagas revelam “um carácter dramático e prefiguram a técnica do cinematógrafo”. Não tem dificuldade em aceitar que se inspiram na realidade e se reportam a factos verídicos. Não se incomoda que a sua forma seja a de uma crónica vinculada ao acontecimento objectivo e nem sequer se importa desconhecer o nome dos seus autores, mas talvez tivessem sido homens que recolheram esses factos esquecidos no anonimato das aldeias. E de algum modo correspondem ao impulso genético que nasce das próprias raízes e estão na origem do folclore, dos cantos populares que brotam como as flores do campo em todos os continentes, sem excluir sequer os povos latino-americanos.
Observa que a partir de certo momento (indica o ano mil) os 'thulir' ou recitadores sem nome são substituídos pelos escaldos, poetas que se identificam por um apelido e assinalam o aparecimento do escritor assim individualizado, mais ou menos profissional, que surge pela necessidade da sociedade, para a qual a poesia narra a história e denota uma tomada de consciência da sua identidade. Borges não hesitará em servir-se das literaturas estrangeiras de qualquer época e território para semear e adubar o seu próprio território, mas não será um súbdito incondicional. Adere ao princípio da autonomia criadora, tornando sua a opinião de Goethe de que “o Canto dos Nibelungos é clássico, mas não deve ser tomado como modelo, nem tão-pouco os chineses, os sérvios ou Calderón”. 

Os Dois Borges - Vida, Sonhos, Enigmas, Volodia Teitelboim, Trad. Serafim Ferreira, Campo das Letras, 2001

quarta-feira, 10 de setembro de 2014

segunda-feira, 1 de setembro de 2014

10 coisas que você precisa saber sobre os extremistas do Estado Islâmico

A começar pelo nome do grupo: afinal, é EI, EIIL, EIIS, ISIS, ISIL, Califado...?


EIIL, EIIS, ISIS ou ISIL? Estado Islâmico ou Califado?
 
O grupo de extremistas islâmicos sunitas que está espalhando o terror por partes da Síria e do Iraque não causou apenas um rastro de morte e destruição, mas também muita confusão na cabeça das pessoas do mundo
inteiro.

1. O que ou quem é o EIIL? Como ele surgiu?
 
O EIIL (Estado Islâmico do Iraque e do Levante) é formado por extremistas sunitas, recrutados em todo o mundo de língua árabe e até em regiões externas a ele. Suas origens se conectam com Abu Musab al-Zarqawi, terrorista nascido na Jordânia.
 
"Al-Zarqawi foi para o Afeganistão como jihadista no final da década de 1980", explica o padre Mallon. "Lá, ele fundou a Organização para a Tawhid (proclamação da unidade de Deus) e para a Jihad e, em 2004, colocou essa organização sob a liderança da Al-Qaeda e declarou a guerra total contra os xiitas".
 
O Estado Islâmico (EI, outro dos nomes e siglas atribuídos ao grupo) foi muitas vezes chamado de “Al-Qaeda do Iraque” durante a Guerra do Iraque [nos anos 2000], explica uma nota da arquidiocese de Toronto. O grupo se proclama como um Estado independente que reivindica partes do Iraque, da Síria e do Líbano. Criado no início da Guerra do Iraque, o grupo tem como alvo principal os militares e os governos do Iraque e da Síria, mas assumiu também a autoria de ataques que mataram milhares de civis iraquianos. De acordo com estudos de agências de inteligência norte-americanas, o Estado Islâmico tem planos de tomar o poder e transformar esse território num estado islâmico fundamentalista.

"Parece então que o EIIL é um desdobramento da Al-Qaeda do Iraque", observa o padre Mallon. "Mas a própria Al-Qaeda já criticou o EIIL por ser excessiva e indiscriminadamente violento, o que o colocaria no risco de perder apoio popular".
 
"Como ramo da Al-Qaeda, o EIIL segue a teologia wahabita do islamismo sunita, que surgiu no leste da Arábia nos anos 1740", destaca o padre Pacwa. "Sua obsessão é com o conceito da unicidade de Deus. Os primeiros wahabitas se revoltaram com as honrarias dedicadas ao profeta Maomé em seu túmulo na cidade de Medina. Por isso eles destruíram o túmulo completamente. A catequese deles na Arábia enfatizava a unidade absoluta de Deus e convocava todos os muçulmanos a se unirem a eles na aplicação desta doutrina ou, do contrário, a serem mortos".
 
O EIIL é hoje liderado por Abu Bakr al-Baghdadi, que se declarou "Califa" em 29 de junho deste ano. Se a constante alternação de nomes do EIIL é desconcertante, aplica-se o mesmo a Al-Baghdadi. Seu nome original é Ibrahim Awwad Ibrahim Ali al-Badri al-Samarra'i. Ele adotou seu atual “nome de guerra” em homenagem ao primeiro califa, Abu Bakr.
 
"Recentemente, Al-Baghdadi começou a se chamar de Abu Bakr al-Baghdadi al Husseini al-Qurayshi, sendo que os dois últimos nomes são uma tentativa de ligar a linhagem dele com a do profeta Maomé e com a tribo dos coraixitas", explica o padre Mallon. "Se ele é mesmo descendente do Profeta, isso deveria ficar óbvio em seu nome. Mais recentemente, ele passou a usar o título de ‘O Comandante dos Fiéis Califa Ibrahim’".

2. Por que surgiu o EIIL?
 
O pe. Mallon aponta dois motivos para o surgimento do EIIL:
 
“Motivo ideológico: difundir o islã e o domínio islâmico pelas terras do clássico Califado Abássida, que chegou a se estender até a Península Ibérica. O grupo mostra pouca compreensão da história axadrezada do califado. Neste sentido, o EIIL tende a um certo “romantismo”, mas de tipo incrivelmente brutal.
 
Motivo prático: muitos sunitas no Iraque e na Síria sentem-se marginalizados, tanto pelo governo alauíta de Bashar al-Assad em Damasco quanto pelo governo xiita de Nouri al-Maliki em Bagdá. Eu acho que muitos sunitas veem o EIIL como a única oposição eficaz, especialmente no tocante ao regime de Bagdá. Não tenho certeza, mas suspeito que a lealdade não vai muito a fundo”.
 
3. Qual é o objetivo do EIIL e a probabilidade de atingi-lo?
 
O objetivo do grupo é restabelecer o califado e ampliar ao máximo a hegemonia religiosa, política e militar islâmica, diz o padre Mallon. "Para conseguir isso, eles estão dispostos a violar os princípios tradicionais da guerra islâmica".
 
4. É um movimento global?
 
“Sim e não”, responde o padre Mallon. "É global porque apela a um público amplo de muçulmanos que compartilham a ideia romântica de um califado em que os muçulmanos governam tudo e todos. Mas não é um movimento global quando levamos em consideração que ele provavelmente não é sustentável em vários aspectos. Além disso, haverá oposição por conta do crescente desejo de democracia em muitos países muçulmanos. A democracia é a antítese dos califados, historicamente autocráticos. E os xiitas, em princípio, são contrários a um califado sunita mandando neles".
 
Prossegue Mallon: "Embora o EIIL use os métodos mais brutais e selvagens, seria um grave erro enxergá-lo como um grupo primitivo. Ele já se mostrou perturbadoramente sofisticado no uso dos meios de comunicação e das mídias sociais. Há relatos de uma loja em Istambul e de um site em que podem ser compradas camisetas com o logotipo do EIIL, além da faixa que nós vemos na testa dos combatentes do EIIL e de outras formas de propaganda. O New York Times estima que o EIIL seja o grupo terrorista mais rico do mundo, com centenas de milhões de dólares. A maior parte dessa riqueza vem dos bancos e das pessoas físicas que eles roubaram nas cidades saqueadas. Parece que eles têm evitado depender de fontes externas de financiamento, porque essas fontes poderiam ser facilmente bloqueadas".
 
5. Qual é a atitude do EIIL em relação com o cristianismo, em particular no Oriente Médio?
 
O pe. Mallon explica que a atitude do EIIL em relação ao cristianismo parece basear-se na crença de que todas as referências positivas aos cristãos no alcorão foram revogadas (por exemplo, a que chama os cristãos de "os mais próximos dos muçulmanos no amor"). Isto reduziria os cristãos a alvos de humilhação, aniquilação ou conversão forçada. "Mas esta posição não é muito difundida entre os muçulmanos em geral".
 
O pe. Pacwa explica que os wahabitas modificaram o ensino corânico tradicional em relação às outras religiões. "O alcorão ensina que os judeus e os cristãos fazem parte dos ‘povos do livro’, já que a sua bíblia inclui livros de ou sobre antigos profetas que o islã reconhece. Judeus e cristãos que se submeterem ao islã e pagarem o imposto da jizya para receber proteção dos muçulmanos estarão seguros. Mas o wahabismo ensina que os judeus e os cristãos de hoje em dia decaíram e não são mais considerados parte dos ‘povos do livro’. Eles são hoje iguais aos infiéis, ou ‘kufar’, em árabe, e a alternativa que resta a eles é converter-se ou ser mortos. O mesmo se aplica aos pagãos e aos ateus. Por incrível que pareça, os radicais também atribuem o status de infiéis aos xiitas e a todas as outras seitas do próprio islamismo, como a dos alauítas que governam a Síria. Isto explica por que eles atacam cristãos, xiitas, alauítas, yezidis e qualquer um que seja diferente dos wahabitas, que ensinariam a forma mais pura da unicidade de Deus".

6. Há muitos relatos de atrocidades cometidas contra os cristãos e outras minorias religiosas. O que se sabe com certeza?
 
O pe. Mallon diz que existem "testemunhos razoavelmente confiáveis ​​de atrocidades" cometidas pelo EIIL contra os cristãos, contra os sunitas moderados, contra os xiitas e contra outros grupos religiosos. "Muitos foram executados, mulheres foram escravizadas, etc.".
 
O pe. Pacwa acrescenta que a ideologia wahabita não explica as crucificações relatadas. "Decapitar crianças não é uma prática islâmica normal, nem ensinar aos filhos que as cabeças humanas são troféus. Se eles fossem loucos, a disciplina militar deles não seria tão boa. Aparentemente, eles escolheram uma escuridão tamanha de alma que até a Al-Qaeda já rejeitou o EIIL".
 
7. Os Estados Unidos ou a comunidade internacional poderiam tê-los parado antes? E agora?
 
O EIIL poderia ter sido enfraquecido pelos Estados Unidos e pela comunidade internacional, acredita o padre Mallon, "mas eu não acredito que ele possa ser parado por agentes externos. Ele tem que ser parado de dentro da sociedade síria e iraquiana. Quando a população em geral se revoltou com a violência de Al-Zarqawi, o movimento dele perdeu força consideravelmente. Os apoiadores ideológicos ou românticos do EIIL parecem ignorar muito da história, dos fatos e até da moralidade islâmica. Mas eu acho que os apoiadores práticos e políticos são na maioria sunitas com graves e reais queixas contra os governos de Damasco e de Bagdá. Eu acredito que se as demandas desses sunitas fossem apresentadas de uma forma justa, equitativa e democrática, o EIIL perderia muito do apoio que tem hoje".
 
Esta é uma realidade que os governos ocidentais deveriam enxergar.
 
8. O Iraque está formando um novo governo. Qual é a relevância deste processo?
 
Formar um novo governo não é suficiente, opina o pe. Mallon. O Iraque tem que formar um novo tipo de governo, um governo livre de corrupção e de nepotismo, livre de divisões, "um governo de, por e para todos os iraquianos. Sem este novo tipo de governo, eu não acredito que o Iraque seja viável como país unificado".
 
9. Qual é o papel que as Igrejas podem desempenhar nesta crise humanitária?
 
Pe. Mallon: "As Igrejas cristãs do Oriente Médio estão numa posição de fraqueza, talvez na sua pior posição em todos os tempos. Mas elas podem fornecer assistência tanto material quanto espiritual para quem está sofrendo. As Igrejas podem dar um poderoso testemunho da necessidade de justiça. As Igrejas têm a capacidade de espalhar informação não partidária por todo o planeta. As Igrejas poderiam ter um papel de conciliadoras. Os árabes cristãos, normalmente, são pessoas educadas e altamente qualificadas. Eles poderiam fornecer o arcabouço teórico para a emergência da sociedade civil e das estruturas democráticas na região e funcionar como agentes de reconciliação. Se essas possibilidades vão se concretizar é uma questão em aberto, que parece distante, futura. Mas o futuro é o lugar onde vive a esperança...".
 
10. Afinal de contas, qual é o nome do grupo?
 
Inicialmente, a mídia ocidental se referiu ao grupo extremista com a sigla EIIS (Estado Islâmico do Iraque e da Síria), traduzida para cada idioma ou mantida em inglês (ISIS). Depois, passou-se a usar a sigla EIIL (Estado Islâmico do Iraque e do Levante), porque a região historicamente conhecida como Levante abrange também o Líbano, outro país em que o grupo reivindica territórios. Em seguida, o próprio grupo passou a se denominar apenas Estado Islâmico (EI), não mais se restringindo à região do Iraque, da Síria e do Líbano e dando a entender, portanto, que as suas ambições de domínio são mais abrangentes. Finalmente, no dia 29 de junho deste ano, o líder do grupo se proclamou califa e afirmou ter restabelecido o califado, passando a adotar este termo para se referir aos territórios que o grupo foi dominando. Como a existência de fato do califado é amplamente questionada, a imprensa e os estudiosos preferem continuar a chamar o grupo de EIIL (Estado Islâmico do Iraque e do Levante) ou apenas de EI (Estado Islâmico).



  Tarde Te amei, beleza tão antiga e tão nova, tarde Te amei! E eis que estavas dentro de mim e eu fora, e aí Te procurava e eu, sem beleza, precipitava-me nessas coisas belas que Tu fizeste. Tu estavas comigo e eu não estava Contigo. Retinham-me longe de Ti aquelas coisas que não seriam, se em Ti não fossem. Chamaste, e clamaste, e rompeste a a minha surdez; brilhaste, cintilaste, e afastaste a minha cegueira; exalaste o Teu perfume, e eu respirei e suspiro por Ti; saboreei-te e tenho fome e sede; tocaste-me e inflamei-me no desejo da Tua Paz.

SANTO AGOSTINHO *in Confissões*


Santo Agostinho de Hipona 
(Tagaste, 13 de novembro de 354 Hippo Regius 
(também chamada Hipona), 28 de agosto de 430.



Corpo Santo - Ruy Cinatti



Ruy Cinatti

CORPO SANTO - uma antologia de folhas volantes

selecção e prefácio de Manuel de Freitas
Averno
2014