sexta-feira, 28 de fevereiro de 2014
sexta-feira, 21 de fevereiro de 2014
Arsenii, alguns poemas
Arsenii Tarkóvski (1907 - 1989)
Arsenii Tarkóvski aos 30 anos de idade, em 1937.
Fotografia de Lev Gornung (1902-1993).
Arseni Tarkóvski foi um poeta e tradutor russo, nascido na Ucrânia a 25 de Junho de 1907, então parte do Império. Trabalhou por muitos anos como jornalista. Estudou Literatura em uma universidade de Moscovo, onde conheceria sua esposa, Maria Ivanova Vishnyakova, com quem teria dois filhos, um deles o cineasta Andrei Tarkovski
Tradutor do turcomeno, georgiano, arménio e árabe, é conhecido por suas traduções para o russo de poetas como Al-Ma‘arri (973 – 1057), Magtymguly Pyragy (1733 – 1797), Mämmetweli Kemine (1770 – 1840), Sayat-Nova (1712 - 1795), Vazha-Pshavela (1861 – 1915), Adam Mickiewicz (1798 – 1855) e Grigol Orbeliani (1804 – 1883), entre outros.
Sua primeira colectânea de poemas, Перед снегом (Antes da neve, 1962), só seria publicada quando o poeta já tinha mais de 50 anos. A esta, seguiram-se livros como Земле земное (À terra os seus, 1966), Вестник (Mensageiro, 1969), Зимний день (Dia de inverno, 1980) e От юности до старости (Da juventude à velhice, 1987).
Conhecido na Rússia, seu trabalho alcançou um público internacional através do trabalho de seu filho, que usaria a poesia do pai, vocalizada pelo próprio, em um de seus filmes mais marcantes, Зеркало (O espelho, 1975), em que retorna a suas memórias de infância, quando o pai havia deixado a família e se encontrava no front, durante a Segunda Guerra Mundial. Ferido em ação em 1943, Arseni Tarkóvski teria uma das pernas amputadas.
Um poema do pai aparece ainda na voz do stalker no filme Stalker(1979).O poeta morreu em Moscovo, a 27 de Maio de 1989.
§
POEMAS DE ARSENI TARKÓVSKI
Vida, Vida
Não acredito em pressentimentos, e augúrios
Não me amedrontam. Não fujo da calúnia
Nem do veneno. Não há morte na Terra.
Todos são imortais. Tudo é imortal. Não há por que
Ter medo da morte aos dezassete
Ou mesmo aos setenta. Realidade e luz
Existem, mas morte e trevas, não.
Estamos agora todos na praia,
E eu sou um dos que içam as redes
Quando um cardume de imortalidade nelas entra.
Vive na casa e a casa continua de pé
Vou aparecer em qualquer século
Entrar e fazer uma casa para mim
É por isso que teus filhos estão ao meu lado
E as tuas esposas, todos sentados em uma mesa,
Uma mesa para o avô e o neto
O futuro é consumado aqui e agora
E se eu erguer levemente minha mão diante de ti,
Ficarás com cinco feixes de luz
Com omoplatas como esteios de madeira
Eu ergui todos os dias que fizeram o passado
Com uma cadeia de agrimensor, eu medi o tempo
E viajei através dele como se viajasse pelos Urais
Escolhi uma era que estivesse à minha altura
Rumamos para o sul, fizemos a poeira rodopiar na estepe
Ervaçais cresciam viçosos; um gafanhoto tocava,
Esfregando as pernas, profetizava
E contou-me, como um monge, que eu pereceria
Peguei meu destino e amarrei-o na minha sela;
E agora que cheguei ao futuro ficarei
Erecto sobre meus estribos como um garoto.
Só preciso da imortalidade
Para que meu sangue continue a fluir de era para era
Eu prontamente trocaria a vida
Por um lugar seguro e quente
Se a agulha veloz da vida
Não me puxasse pelo mundo como uma linha.
(in Tarkóvski, Andrei. Esculpir o tempo, tradução de Jefferson Luiz Camargo. São Paulo: Martins Fontes, 1990. - trata-se de um dos poemas recitados por Arseni Tarkóvski no filme O Espelho, de 1975).
:
Outra tradução:
VIVA, VIDA!
Não acredito em premonições, não temo superstições,
veneno e calúnia não vigoram sobre mim.
Não existe morte, senão plenitude no mundo.
Somos todos imortais; tudo é imortal.
Não é preciso temer a morte,
seja aos dezassete ou aos setenta.
Nada há além de presente e de luz;
escuridão e morte não existem neste mundo.
Chegados que somos todos à margem, sou um dos escolhidos
para puxar as redes quando o cardume da imortalidade as cumular.
Habitai a casa, e a casa se sustentará.
Invocarei um dos séculos ao acaso: eu o adentrarei
e nele construirei minha morada.
Sento-me portanto à mesma mesa
que vossos filhos, mães e esposas.
Uma só mesa para servir bisavô e neto:
o futuro se consuma aqui agora,
e quando eu erguer a minha mão,
os cinco raios de luz convosco ficarão.
Omoplatas minhas como vigas mestras,
sustentaram por minha vontade a revolução dos dias.
Medi o tempo com vara de agrimensor:
eu o venci como se voasse sobre os Urais.
Talhei as idades à minha medida.
Rumamos para o sul, um rastro de poeira pela estepe.
As altas ervas agitavam-se entre vapores
e o grilo dançarino,
ao perceber com suas antenas as ferraduras faiscantes,
profetizou-me, como monge possuído, a aniquilação.
Atei então, rápido, meu destino à sela,
ergui-me sobre os estribos como um menino
e agora cavalgo os tempos vindouros a meu ritmo.
Basta-me minha imortalidade,
o fluir de meu sangue de uma para outra era,
mas em troca de um canto quente e seguro
daria de bom grado minha vida,
conquanto sua agulha voadora
não me arrastasse, feito linha, mundo afora.
(Versão a partir de traduções para o inglês e outras línguas ocidentais: Álvaro Machado).
§:
Outra tradução:
VIVA, VIDA!
Não acredito em premonições, não temo superstições,
veneno e calúnia não vigoram sobre mim.
Não existe morte, senão plenitude no mundo.
Somos todos imortais; tudo é imortal.
Não é preciso temer a morte,
seja aos dezassete ou aos setenta.
Nada há além de presente e de luz;
escuridão e morte não existem neste mundo.
Chegados que somos todos à margem, sou um dos escolhidos
para puxar as redes quando o cardume da imortalidade as cumular.
Habitai a casa, e a casa se sustentará.
Invocarei um dos séculos ao acaso: eu o adentrarei
e nele construirei minha morada.
Sento-me portanto à mesma mesa
que vossos filhos, mães e esposas.
Uma só mesa para servir bisavô e neto:
o futuro se consuma aqui agora,
e quando eu erguer a minha mão,
os cinco raios de luz convosco ficarão.
Omoplatas minhas como vigas mestras,
sustentaram por minha vontade a revolução dos dias.
Medi o tempo com vara de agrimensor:
eu o venci como se voasse sobre os Urais.
Talhei as idades à minha medida.
Rumamos para o sul, um rastro de poeira pela estepe.
As altas ervas agitavam-se entre vapores
e o grilo dançarino,
ao perceber com suas antenas as ferraduras faiscantes,
profetizou-me, como monge possuído, a aniquilação.
Atei então, rápido, meu destino à sela,
ergui-me sobre os estribos como um menino
e agora cavalgo os tempos vindouros a meu ritmo.
Basta-me minha imortalidade,
o fluir de meu sangue de uma para outra era,
mas em troca de um canto quente e seguro
daria de bom grado minha vida,
conquanto sua agulha voadora
não me arrastasse, feito linha, mundo afora.
(Versão a partir de traduções para o inglês e outras línguas ocidentais: Álvaro Machado).
Os Primeiros Encontros
Cai a noite sobre as montanhas da Geórgia;
À minha frente ruge o Aragva.
Estou em paz e triste; há um lampejo em meus suspiros,
Meus suspiros são todos teus,
Teus, e de mais ninguém... Minha melancolia
Está insensível a angústias e apreensões,
E meu coração arde e ama mais uma vez,
Pois nada pode fazer além de amar.
Todo instante que passávamos juntos
Era uma celebração, uma Epifania,
No mundo inteiro, nós os dois sozinhos.
Eras mais audaciosa, mais leve que a asa de um pássaro,
Estonteante como uma vertigem, corrias escada abaixo
Dois degraus por vez, e me conduzias
Por entre lilases húmidos, até teu domínio
No outro lado, para além do espelho.
Enquanto isso o destino seguia nossos passos
Como um louco de navalha na mão.
Arseni Tarkóvski (1907 - 1989)
quinta-feira, 20 de fevereiro de 2014
segunda-feira, 17 de fevereiro de 2014
From Lapland with love
Há seres inesquecíveis apesar de nunca vistos. A eles chegamos frequentemente por relatos de terceiros, quantas vezes breves, parcos em detalhe. Ainda assim parecem ser dotados de uma estranha resiliência, um estranho aferro à memória de quem deles um dia soube e não mais os esqueceu.
Acima, uma das fotos que são reproduzidas num livro publicado recentemente na Noruega, um testemunho fotográfico que tem a particularidade de ter sido registado a cores – algo que é relativamente raro naquela época. Imediatamente atrás do oficial alemão pode ver-se uma figura mal definida que aparenta ser uma mulher de etnia lapã com o seu traje típico. Uma das outras fotos retrata o sofrimento daquela gente naquele sítio e tempo em que povoações inteiras foram queimadas, deixando as populações despojadas dos seus bens e à mercê de um clima impiedoso.
Não sou muito de aqui aconselhar coisas, mas se tivesse que aconselhar algo a alguém que adopte a Noruega como país de acolhimento aconselharia a obra da antropóloga social Marianne Gullestad (a tal que lembrava na introdução do Art ser a Antropologia poesia disfarçada de ciência) como a maneira mais económica de compreender a mentalidade norueguesa. Ou o “carácter nacional” – para usar outro termo. Aconselharia em primeiro lugar o The Art of Social Relations (1992) disponível em inglês, como grande parte da sua obra. Como complemento, um útil e instrutivo estudo baseado em autobiografias: "Everyday life Philosophers: Modernity, Morality and Autobiography in Norway.
Vem tudo isto a propósito da que parece ser uma mulher de etnia lapã na foto de cima. Numa das quatro autobiografias de onde são extrapoladas as conclusões do Everyday Life Philosophers, Einar – o lapão que foi funcionário público na idade adulta mas que cresceu pobre no norte da Noruega, e era ainda uma criança no tempo da invasão alemã – recordava um episódio estranho. Os alemães tinham entrado com estardalhaço por ali adentro gritando e revistando a pobre casa de madeira. O pão, recém-cozido ainda, estava à vista na cozinha. Um soldado alemão, que Einar recorda muito jovem, com a arrogância e maus-modos que celebrizaram a espécie, por revista trespassou-o à baioneta. Einar, dessa experiência assustadora para uma criança, recordava principalmente a mãe triste, desgostosa. Em vez de preocupada exclusivamente com o filho, com o perder os bens ou a vida, expressava preocupação com o soldado alemão. Sentia pena do pobre rapaz que meteu baioneta ao pão, viu nisso um sinal inequívoco que o soldado tinha perdido o sentido das proporções, o respeito pelas coisas sagradas da vida. Naquele caso, o pão. A criança lembrar-se-ia disso pela vida fora, da vítima que tem pena do agressor, e de tal forma que achou relevante contá-lo na auto-biografia. Dessa mulher lapã sei apenas isto; o que Marianne Gullestad recolheu da história de Einar. Não impede que (às vezes involuntariamente), recorde o episódio.
Lapãs ou cristãs, as famílias despertam (ainda que o não queiram) a piedade e a comiseração.
sábado, 15 de fevereiro de 2014
Rainer Maria Rilke, aspectos da sua biografia e alguns poemas
RAINER MARIA RILKE
Praga por Martin Froyda |
Poeta, romancista e ensaísta que explorava temas espirituais e místicos, equilibrado entre um romantismo melancólico e o modernismo. Modernista antes do tempo e romântico muito depois de já estar fora de moda, esse célebre escritor checo de língua alemã, fez uma ponte sobre o abismo da literatura alemã entre o poeta lírico Heinrich Heine e os "ismos" da década de 1920. René Karl Wilhelm Johann Josef Maria Rilke - mais conhecido pelo pseudónimo de Rainer Maria Rilke - nasceu no dia 4 de Dezembro de 1875, na cidade de Praga, na antiga Checoslováquia. Sua mãe, até ele completar cinco anos de idade, colocava nele as roupas de menina que pertenciam a sua irmã falecida. Quiçá tal facto pode ter influenciado de forma contundente sua obra literária e seu modo de vida. Entretanto, sua mãe também encorajou seu amor pela poesia, apresentando-lhe a obra do grande dramaturgo alemão Friedrich Schiller. Por toda a vida, Rilke estaria cercado de mulheres influentes e intrigantes. Contudo, nenhuma foi mais marcante que a romancista e psicanalista russa Lou-Andreas Salomé (1861-1937), misteriosa mulher, que coincidentemente também foi o grande "amor platónico" do renomadíssimo filósofo alemão Friedrich Nietzsche (1844-1900), Salomé introduziu Rilke na colónia de artistas de Worpswede onde vivia a pintora Paula Modersohn-Becker, pioneira do expressionismo. Lá, ele conheceu aquele que viria a ser sua esposa, a artista Clara Westhoff, que por sua vez o apresentou ao seu professor, o escultor Auguste Rodin, para quem Rilke trabalhou como secretário a partir de 1902. Inspirado em Rodin, Rilke desenvolveu um novo tipo de poesia deliberadamente sugerido nas esculturas do artista. Eram os seus Dinggedichten" (Poemas-coisa), que condensavam observações objectivas em versos poderosos. Entre 1912 e 1922, desalojado pela Primeira Guerra Mundial, Rilke trabalhou na sua obra-prima, Elegias de Duíno. Durante um frenético período criativo de dois meses, ele completou as elegias e escreveu os belos Sonetos a Orfeu (obra publicada em 1922), no qual o poeta fala sobre a proximidade da morte. Após essas duas importantes sequências, a saúde de Rilke decaiu e ele passou os cinco anos seguintes viajando entre um sanatório em Territet, na Suíça, e Paris. Apesar do diagnóstico de leucemia, ele produziu um conjunto de poemas em francês com base nas meditações sobre a rosa que ele acreditava causar sua morte. Faleceu no dia 29 de Dezembro de 1926, na cidade de Montreux, na Suíça.
Rose oh reiner wiederspruch, lust,
niemands schlaf zu sein
unter soviel lidern
Rosa, ó contradição pura, volúpia
de ser o sono de ninguém sob tantas
pálpebras.
(Palavras na sepultura de Rilke)
Além das obras apresentadas anteriormente, publicou outras belíssimas, tais como o romance O Caderno de Laurids Brigge (publicado em 1910), as obras poéticas Leben und Lieder - Vida e Canções, em português - (publicada em 1894), Neue Gedichte - Novos Poemas, em português - (publicada em 1907), Der Neuen Gedichte Anderer Teil - A Outra Parte dos Novos Poemas, em português - (publicado em 1908) e na não-ficção publicou em 1934 Cartas a um Jovem Poeta, entre outras.
ALGUNS POEMAS
O torso arcaico de Apolo
Não conhecemos sua cabeça inaudita
Onde as pupilas amadureciam. Mas
Seu torso brilha ainda como um candelabro
No qual o seu olhar, sobre si mesmo voltado
Detém-se e brilha. Do contrário não poderia
Seu mamilo cegar-te e nem à leve curva
Dos rins poderia chegar um sorriso
Até aquele centro, donde o sexo pendia.
De outro modo erguer-se-ia esta pedra breve e mutilada
Sob a queda translúcida dos ombros.
E não tremeria assim, como pele selvagem.
E nem explodiria para além de todas as fronteiras
Tal como uma estrela. Pois nela não há lugar
Que não te mire: precisas mudar de vida.
(Tradução: Paulo Quintela)
- Que farás tu, meu Deus, se eu perecer?
Que farás tu, meu Deus, se eu perecer?
Eu sou o teu vaso - e se me quebro?
Eu sou tua água - e se apodreço?
Sou tua roupa e teu trabalho
Comigo perdes tu o teu sentido.
Depois de mim não terás um lugar
Onde as palavras ardentes te saúdem.
Dos teus pés cansados cairão
As sandálias que sou.
Perderás tua ampla túnica.
Teu olhar que em minhas pálpebras,
Como num travesseiro,
Ardentemente recebo,
Virá me procurar por largo tempo
E se deitará, na hora do crepúsculo,
No duro chão de pedra.
Que farás tu, meu Deus? O medo me domina.
(Tradução: Paulo Plínio Abreu)
Que farás tu, meu Deus, se eu perecer?
Eu sou o teu vaso - e se me quebro?
Eu sou tua água - e se apodreço?
Sou tua roupa e teu trabalho
Comigo perdes tu o teu sentido.
Depois de mim não terás um lugar
Onde as palavras ardentes te saúdem.
Dos teus pés cansados cairão
As sandálias que sou.
Perderás tua ampla túnica.
Teu olhar que em minhas pálpebras,
Como num travesseiro,
Ardentemente recebo,
Virá me procurar por largo tempo
E se deitará, na hora do crepúsculo,
No duro chão de pedra.
Que farás tu, meu Deus? O medo me domina.
(Tradução: Paulo Plínio Abreu)
(No Jardin des Plantes, Paris)
De percorrer as grades o seu olhar cansou-se
e não retém mais nada lá no fundo,
como se a jaula de mil barras fosse
e além das barras não houvesse mundo.
O andar elástico dos passos fortes dentro
da ínfima espiral assim traçada
é uma dança da força em torno ao centro
de uma grande vontade atordoada.
da ínfima espiral assim traçada
é uma dança da força em torno ao centro
de uma grande vontade atordoada.
Mas por vezes a cortina da pupila
ergue-se sem ruído – e uma imagem então
vai pelos membros em tensão tranquila
até desvanecer no coração.
ergue-se sem ruído – e uma imagem então
vai pelos membros em tensão tranquila
até desvanecer no coração.
Rainer Maria Rilke, in, Carrossel e outros poemas, org. e trad. de Vasco Graça Moura
A Gazela
Gazella Dorcas
Mágico ser: onde encontrar quem colha
duas palavras numa rima igual
a essa que pulsa em ti como um sinal?
De tua fronte se erguem lira e folha
e tudo o que és se move em similar
canto de amor cujas palavras, quais
pétalas, vão caindo sobre o olhar
de quem fechou os olhos, sem ler mais,
para te ver: no alerta dos sentidos,
em cada perna os saltos reprimidos
sem disparar, enquanto só a fronte
a prumo, prestes, para: assim, na fonte,
a banhista que um frémito assustasse:
a chispa de água no voltear da face.
(Tradução: Augusto de Campos)
Gerrit van Honthorst, S. Sebastião, ca. 1623 |
São Sebastião
Como alguém que jazesse, está de pé,
sustentado por sua grande fé.
Como mãe que amamenta, a tudo alheia,
grinalda que a si mesma se cerceia.
E as setas chegam: de espaço em espaço,
como se de seu corpo desferidas,
tremendo em suas pontas soltas de aço.
Mas ele ri, incólume, às feridas.
Num só passo a tristeza sobrevém
e em seus olhos desnudos se detém,
até que a neguem, como bagatela,
e como se poupassem com desdém
os destrutores de uma coisa bela.
(Tradução: Augusto de Campos)
O Solitário
Não: uma torre se erguerá do fundo
do coração e eu estarei à borda:
onde não há mais nada, ainda acorda
o indizível, a dor, de novo o mundo.
Ainda uma coisa, só, no imenso mar
das coisas, e uma luz depois do escuro,
um rosto extremo do desejo obscuro
exilado em um nunca-apaziguar,
ainda um rosto de pedra, que só sente
a gravidade interna, de tão denso:
as distâncias que o extinguem lentamente
tornam seu júbilo ainda mais intenso.
(Tradução: Augusto de Campos)
Manuscrito da Primeira Elegia |
A PRIMEIRA ELEGIA (excerto)
Quem, se eu gritasse, me ouviria dentre as ordens
dos anjos? e mesmo que um me apertasse de repente contra o coração: eu morreria da sua existência mais forte. Pois o belo não é senão o começo do terrível, que nós mal podemos ainda suportar, e admiramo-lo tanto porque, impassível, desdenha destruir-nos. Todo o anjo é terrível. E assim eu me reprimo e engulo o chamamento dum soluçar escuro. Ai! de quem poderíamos nós então valer-nos? Nem de anjos, nem de homens, e os bichos perspicazes repararam já que nós não estamos muito confiados em casa neste mundo explicado. Resta-nos talvez qualquer árvore na encosta, que de novo a vejamos diariamente; resta-nos a estrada de ontem e a fidelidade amimada dum costume, que gostou de estar connosco, e por isso ficou e se não foi. Oh! e a Noite, a Noite, quando o vento cheio de espaço dos mundos nos desgasta a face - , a quem não restaria ela, a ansiada a das desilusões suaves, que a cada coração solitário espera penosa. É mais leve aos amantes? Ai! eles apenas se tapam um com o outro a sua sorte. Pois não o sabes ainda? Arroja dos braços o vácuo para os espaços que respiramos; talvez as aves sintam o ar alargado com um voo mais íntimo. Sim, as primaveras precisavam de ti. Muitas estrelas esperavam de ti que as sentisses. Levantava-se uma onda no passado e aproximava-se, ou, ao passares pela janela aberta, um violino entregava-se. Tudo isto era missão. Mas cumpriste-a tu? Não estavas tu sempre distraído ainda de expectativa, como se tudo te anun- ciasse uma Amada? (Onde queres tu abrigá-la, se os grandes pensamentos estranhos em ti entram e saem e muitas vezes pernoitam.) Se, porém, a saudade te assalta, canta as Amantes; longe ainda de ser imortal bastante o seu sentimento célebre. Canta aquelas - quase as invejas! - abandonadas que tu achavas tanto mais amorosas que as satisfeitas. Reco- meça sempre de novo o inacessível louvor; pensa: o herói dura, mesmo a queda lhe foi só um pretexto para ser: seu supremo nascer. Mas as amantes recolhe-as a Natureza cansada de novo em si, como se não houvesse duas vezes as forças para cumprir tal obra.
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