Há seres inesquecíveis apesar de nunca vistos. A eles chegamos frequentemente por relatos de terceiros, quantas vezes breves, parcos em detalhe. Ainda assim parecem ser dotados de uma estranha resiliência, um estranho aferro à memória de quem deles um dia soube e não mais os esqueceu.
Acima, uma das fotos que são reproduzidas num livro publicado recentemente na Noruega, um testemunho fotográfico que tem a particularidade de ter sido registado a cores – algo que é relativamente raro naquela época. Imediatamente atrás do oficial alemão pode ver-se uma figura mal definida que aparenta ser uma mulher de etnia lapã com o seu traje típico. Uma das outras fotos retrata o sofrimento daquela gente naquele sítio e tempo em que povoações inteiras foram queimadas, deixando as populações despojadas dos seus bens e à mercê de um clima impiedoso.
Não sou muito de aqui aconselhar coisas, mas se tivesse que aconselhar algo a alguém que adopte a Noruega como país de acolhimento aconselharia a obra da antropóloga social Marianne Gullestad (a tal que lembrava na introdução do Art ser a Antropologia poesia disfarçada de ciência) como a maneira mais económica de compreender a mentalidade norueguesa. Ou o “carácter nacional” – para usar outro termo. Aconselharia em primeiro lugar o The Art of Social Relations (1992) disponível em inglês, como grande parte da sua obra. Como complemento, um útil e instrutivo estudo baseado em autobiografias: "Everyday life Philosophers: Modernity, Morality and Autobiography in Norway.
Vem tudo isto a propósito da que parece ser uma mulher de etnia lapã na foto de cima. Numa das quatro autobiografias de onde são extrapoladas as conclusões do Everyday Life Philosophers, Einar – o lapão que foi funcionário público na idade adulta mas que cresceu pobre no norte da Noruega, e era ainda uma criança no tempo da invasão alemã – recordava um episódio estranho. Os alemães tinham entrado com estardalhaço por ali adentro gritando e revistando a pobre casa de madeira. O pão, recém-cozido ainda, estava à vista na cozinha. Um soldado alemão, que Einar recorda muito jovem, com a arrogância e maus-modos que celebrizaram a espécie, por revista trespassou-o à baioneta. Einar, dessa experiência assustadora para uma criança, recordava principalmente a mãe triste, desgostosa. Em vez de preocupada exclusivamente com o filho, com o perder os bens ou a vida, expressava preocupação com o soldado alemão. Sentia pena do pobre rapaz que meteu baioneta ao pão, viu nisso um sinal inequívoco que o soldado tinha perdido o sentido das proporções, o respeito pelas coisas sagradas da vida. Naquele caso, o pão. A criança lembrar-se-ia disso pela vida fora, da vítima que tem pena do agressor, e de tal forma que achou relevante contá-lo na auto-biografia. Dessa mulher lapã sei apenas isto; o que Marianne Gullestad recolheu da história de Einar. Não impede que (às vezes involuntariamente), recorde o episódio.
Lapãs ou cristãs, as famílias despertam (ainda que o não queiram) a piedade e a comiseração.
Ainda melhor que o original...
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