quinta-feira, 5 de junho de 2014

Camões, Máquina do mundo

A Esfera

Escrito por Luís de Camões


Depois que a corporal necessidade
Se satisfaz do mantimento nobre,
E na harmonia e doce suavidade
Viram os altos feitos que descobre,
Tethys, de graça ornada e gravidade,
Para que com mais alta glória dobre
As festas deste alegre e claro dia,
Para o felice Gama assim dizia:

- «Faz-te mercê, Barão, a Sapiência
Suprema de cos olhos corporais
Veres o que não pode a vã ciência
Dos errados e míseros mortais.
Segue-me firme e forte, com prudência,
Por este monte espesso, tu cos mais.» -
Assim lhe diz, e o guia por um mato
Árduo, difícil, duro a humano trato.

Não andam muito, que no erguido cume
Se acharam, onde um campo se esmaltava
De esmeraldas, rubis, tais que presume
A vista que divino chão pisava.
Aqui um globo vêem no ar, que o lume
Claríssimo por ele penetrava,
De modo que o seu centro está evidente,
Como a superfície, claramente.

Qual a matéria seja não se enxerga,
Mas enxerga-se bem que está composto
De vários orbes, que a divina verga
Compôs, e um centro a todos só tem posto,
Volvendo, ora se abaixe, ora se erga,
Nunca se ergue ou se abaixa, e um mesmo rosto
Por toda a parte tem, e em toda a parte
Começa e acaba, enfim, por divina arte.

Uniforme, perfeito, em si sustido,
Qual enfim o Arquétipo que o criou.

Vendo o Gama este globo, comovido
De espanto e de desejo, ali ficou.
Diz-lhe a deusa: o transunto, reduzido
Em pequeno volume, aqui te dou
Do mundo aos olhos teus, para que vejas
Por onde vás e irás e o que desejas.

Vês aqui a grande máquina do mundo,
Etérea e elemental, que fabricada
Assim foi do saber alto e profundo,
Que é sem princípio e meta limitada.
Quem cerca em redor este rotundo
Globo e sua superfície tão limada,
É Deus; mas o que é Deus, ninguém o entende,
Que a tanto o engenho humano não se estende.

(Os Lusíadas, Canto X). 

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