domingo, 25 de novembro de 2012

2 poemas de Vitorino Nemésio


Correspondência ao Mar

Quando penso no mar
A linha do horizonte é um fio de asas
E o corpo das águas é luar;

De puro esforço, as velas são memória
E o porto e as casas
Uma ruga de areia transitória.

Sinto a terra na força dos meus pulsos:
O mais mar, que o remo indica,
E o bombeado do céu cheio de astros avulsos.

Eu, ali, uma coisa imaginada
Que o eterno pica,
Vou na onda, de tempo carregada,

E desenrolo:
Sou movimento e terra delineada,
Impulso e sal de polo a polo.

Quando penso no mar, o mar regressa
A certa forma que só teve em mim -
Que onde ele acaba, o coração começa.

Começa pelo aro das estrelas
A compasso retido em mente pura
E avivado nos vidros das janelas.

Começa pelo peito das baías
Ao rosar-se e crescer na madrugada
Que lhe passa ao de leve as orlas frias.

E, de assim começar, é abstracto e imenso:
Frio como a evidência ponderada,
Quente como uma lágrima num lenço.

Coração começado pelos peixes,
É o golfo de todo o esquecimento
Na mínima lembrança que me deixas,

E a Rosa dos Ventos baralhada:
Meu coração , lágrima inchada,
Mais de metade pensamento.






Tubo de Ensaio

Árvores do Canadá, uma por uma,
A caminho de Otawa, de autocarro,
Propõem seus galhos hibernais ainda
À minha angústia já primaveril.
Com tão pouca matéria a fotossíntese,
Que oxigénio de amor espero eu delas,
Com que carbono as poderei amar?
Porque, enfim, eu morrendo dou-me aos bosques,
A tal selva de Dante é a dor da espécie,
E o mezzo dei camin aqui passar.
Só é estranho que fracos pensamentos
Eu verta nestes tubos de ensaiar:
Eu, que, por causa de Escherichia Coli,
Quase não sei (como se diz?) — meiar...
A Poesia é um louco laboratório,
E eu dispo a bata para não chorar.

Poesias de Vitorino Nemésio, por Maria Madalena Gonçalves, Lisboa: Comunicação, 1983: p. 83-84, 97, 174, 184

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