por Luís Rubira
Goethe conclui a segunda parte de seu Viagem à Itália (Italienische Reise) observando que nenhum relato é capaz de dar conta das impressões que alguém pode experimentar ao empreender uma viagem. Chega a essa conclusão ao comparar os relatos de outros viajantes à Itália, que ele havia lido, e sua experiência particular nesse país; ao mesmo tempo em que se dá conta que suas tentativas de também descrever as impressões experimentadas em sua viagem resultam fragmentárias, parciais. Atribui essa inevitável parcialidade, a qual todos estão submetidos, ao fato de que “a personalidade, os propósitos, as circunstâncias, o favor e o desfavor prestados pelo acaso [...] varia de pessoa para pessoa”. Essa reflexão de Goethe não se limita à experiência na Itália e aos relatos de viagem. Na verdade o escritor alemão acredita que o contato com as fontes orais e escritas é necessário para formarmos o conhecimento, mas que não deve ficar reduzido a elas, sendo mais importante ainda o contato direto com as coisas mesmas.
Esse elemento torna-se particularmente claro em pelo menos três momentos de sua Viagem. Ao chegar a Veneza em 28 de setembro de 1786, ele escreve: “Veneza já não é para mim uma mera palavra, um nome vazio a angustiar-me com tanta freqüência – a mim, o inimigo mortal das palavras ocas”. Referia-se, assim, aos muitos relatos sobre Veneza que havia lido, e por certo aos que ouvira de seu pai, o qual, tendo viajado pela Itália nove anos antes do filho nascer (ou seja, em 1740) não cansara ao longo da vida de “contar-nos sobre Veneza”. Aquele que tomara contato desde jovem com os relatos de seu pai e depois lera publicações sobre a cidade italiana escreve alguns meses depois em Roma:
“Pode-se dizer o que se quiser em benefício das tradições orais e escritas, mas somente em pouquíssimos casos elas serão suficientes, uma vez que são incapazes de transmitir o verdadeiro caráter de seu objeto, e até mesmo nas coisas do espírito. Uma vez, porém, visto o objeto, então se poderá com prazer ler e ouvir a seu respeito, pois a isso juntar-se-á a impressão viva; somente aí é que se poderá refletir e julgar” (2 de janeiro de 1787).
Por fim, é após empreender sua viagem pela Sicília, lugar onde sentiu necessidade de reler Homero, que ele observa:
“Agora que tenho presente em minha mente todas essas costas e promontórios, golfos e baías, ilhas e línguas de terra, rochedos e praias, colinas cobertas de arbustos, suaves pastagens, campos férteis, jardins adornados, árvores bem cuidadas, videiras pendentes, montanhas de nuvens, e planícies, escarpas e bancos rochosos sempre radiantes, com o mar a circundar tudo isso com tantas variações e tanta variedade – somente agora, pois, a Odisséia tornou-se para mim palavra viva” (Nápoles, 17 de maio de 1787).
Essas três passagens de Viagem à Itália deixam ver, pois, a importância que Goethe atribui ao contato direto com as coisas. Além disso, em diversas passagens do livro torna-se evidente que ele acredita que a linguagem é insuficiente para dar conta daquilo que percebemos. Tanto é assim que, ao chegar na pequena cidade de Ariccia, entre Roma e Nápoles, e deter-se ante a entrada da propriedade de um príncipe, ele registra: “A praça diante da entrada é de uma beleza indescritível” (Velletri, 22 de fevereiro de 1787). Essa mesma incapacidade para descrever algo pode ser vista também no momento em que, junto com a duquesa Giovane e desde seu palácio, ele vê o Vesúvio derramando lava: “Tínhamos diante de nós um texto que milênios não bastariam para comentar” (Nápoles, 2 de junho de 1787). A deficiência da oralidade e da escrita para dar conta das percepções leva Goethe constantemente, durante a viagem, a tentar pintar, desenhar, a fim de registrar aquilo que tem diante dos olhos. Esse trabalho, todavia, torna-se árduo, na medida em que ele não domina também as técnicas para melhor fixar aquilo que percebe.
***
É nos Epigramas venezianos, escritos após a viagem à Itália, que ele dirá de forma inequívoca: “Tentei muitas coisas: desenhei, gravei em cobre, / Pintei a óleo, moldei também várias coisas em barro, / Mas sem constância, e não aprendi nem fiz nada”. E complementa, lamentando: “Um só talento levei até quase à mestria: / Escrever alemão! E assim estrago, poeta infeliz, / No pior material agora a vida e a arte”. Sem dúvida, o Goethe dos Epigramas acredita que as artes plásticas possuem superioridade sobre a escrita. Tendo, todavia, o talento para a poesia, ao iniciar seus epigramas em Veneza no ano de 1790, é justamente para objetos nos quais as artes plásticas se fazem presentes que o poeta se voltará:
Sarcófagos e urnas com vida adornou o pagão:
Faunos vão dançando em volta, co’as Bacantes em coro
Fazem variada roda; o bochechudo caprípede
Expele com força o som rouco do corno estridente.
Címbalos, tambores ressoam: vemos e ouvimos o
[mármore.
Adejantes pássaros, que bem sabe ao bico esse fruto!
Nenhum ruído vos ’spanta, inda menos espanta o
[Amor
Que só no vário tumulto sente bem a alegria do
[archote.
Assim, vence a abundância a morte, e a cinza lá dentro
Parece no calmo recinto ainda alegrar-se da vida.
Possa tarde assim envolver do poeta o sarcófago
Este rolo, ricamente adornado de vidapor ele!
O primeiro epigrama volta-se, assim, para os motivos esculpidos em mármore – esse material que Goethe considerava como singular. Curiosamente, 28 anos depois o poeta inglês John Keats também irá tematizar a urna em sua poesia e já logo na primeira estrofe reconhecerá a superioridade da plástica sobre a escrita. Se ambos poetas acreditam nesse aspecto, podemos nos perguntar, como o faz Júlio Cortázar ao abordar a “Ode a uma urna grega” de Keats: “Que fascinação especial existe em descrever algo que já é uma descrição?”, cabendo também a pergunta: que outras semelhanças e diferenças há entre o primeiro epigrama veneziano de Goethe e a “Ode a uma urna grega” de Keats? Comecemos pela última questão.
Nem o poeta alemão nem o inglês conheceram a Grécia. Durante a viagem pela Itália, Goethe recebeu um convite para ir até o solo grego, mas preferiu não se desviar da rota que havia anos planejara. Keats, que aos 23 anos viajou a pé pela Escócia durante 42 dias, o mais próximo que esteve da Grécia foi em solo romano: chegou em Roma, todavia, bastante doente e após quatro meses faleceu, aos 25 anos. Ambos, no entanto, tiveram contato com a literatura e a arte gregas. Na própria Itália Goethe, ao encontrar “a cópia romana de uma estátua grega da escola de Fídias (século V-IV a.C.)”, observa: “No palácio Giustiniani encontra-se uma Minerva detentora de toda a minha admiração. [...] Leiam o que diz Winckelmann sobre o elevado estilo dos gregos”. É também durante sua viagem, como já observamos, que ele relê Homero. Keats, por sua vez, também tomou contato com a obra de Homero, e com mármores gregos ornados com deuses e homens adquiridos pela Inglaterra em 1816. Assim, talvez a leitura que ambos poetas fizeram de Homero tenha influenciado a tomar a urna e seus motivos como motivo de um poema. Na Ilíada, por exemplo, Homero se detém não sobre a urna, mas sobre os motivos do escudo de Aquiles:
“As noivas saíam de suas habitações e eram acompanhadas pela cidade à luz de tochas acesas, ouviam-se repetidos cantos de himeneus, jovens dançarinas formavam círculos, dentro dos quais soavam flautas e cítaras.
Donzelas e mancebos, pensando em coisas ternas, carregavam o doce fruto em cestos de vime; um rapaz tangia suavemente a harmoniosa cítara e entoava com tênue voz um formoso lamento e todos os acompanhavam cantando, emitindo vozes de alegria”.
Se Homero se interessava por motivos que estão em objetos de pequeno porte como um escudo, Goethe e Keats ao abordarem os frisos da urna também se interessam pelo trabalho que a arte grega sulcou em pequenos objetos. Goethe, ademais, já na viagem pela Itália valorizava pedaços de tigela onde apareciam figuras talhadas, bem como por vasos pintados. Em seu primeiro epigrama veneziano o que a urna de Goethe traz é um coro satírico, dionisíaco, um tema bastante presente na arte grega (“Faunos vão dançando em volta, co’as Bacantes em coro”). Segundo Nietzsche, os gregos consideravam o Sátiro (chamado de Fauno pelos romanos) como “a expressão de suas mais altas e mais fortes emoções, enquanto exaltado entusiasta que a proximidade do deus extasia [...] enquanto anunciador da sabedoria que sai do seio mais profundo da natureza”. Assim, a presença do “Bochechudo caprípede” enquanto tema presente no mármore do sarcófago ou da urna (objetos que serviam para o depósito dos restos mortuários) leva Goethe a interpretar que aquilo que ali está tematizado é a exaltação e celebração da vida. O motivo dionisíaco parece estar presente também no poema “Ode a uma urna grega” de Keats. Todavia, o poeta inglês colocará seu foco não propriamente na celebração da vida e sim no “instante eterno”, ou seja, na detenção do vir-a-ser por parte da arte.
A urna que Keats elege em seu poema nunca foi encontrada e provavelmente foi fruto da imaginação do poeta. Apesar disso ela mantém muitos pontos em comum com a urna do epigrama de Goethe. Um exemplo diz respeito à referência aos instrumentos musicais. Todavia, enquanto Goethe se limita a uma descrição onde a percepção dos sentidos prevalece (“Címbalos, tambores ressoam: vemos e ouvimos o mármore”), Keats deixa de lado os sentidos (“As melodias são doces, mas aquelas não ouvidas / São mais doces; desta maneira, vós, suaves flautas, soai; / Não ao ouvido sensorial, mas, ternamente, / Toquem as melodias espirituais do não-som”). Da mesma forma ambos poetas tematizam o amor, mas enquanto Goethe se arrisca a uma descrição que está ligada ao universo sensorial e ao mundo efetivo (“o Amor (…) só no vário tumulto sente bem a alegria do archote”), Keats parece querer fixar no poema uma imobilidade do vir-a-ser (“amor! / Eternamente cálido e para sempre a ser gozado, / Continuamente palpitante e sempre jovial; / Todos eles suspirando a intensa paixão humana”).
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