segunda-feira, 14 de janeiro de 2013

Alentejo - 1




TERRA COM SOMBRA


   Se no princípio do Universo esteve – como creio – a aliança entre o Pensamento e Palavra, só pela Palavra e pelo Pensamento cresceremos no confronto e na aceitação do mistério que nos transcende e nos rodeia. Só com a ajuda da sabedoria nascida do Verbo (encarnado há cerca de dois mil anos) poderemos reconciliar-nos com o Mundo, com o Outro e, sobretudo, connosco – neste tempo tão complexo, de sociedade em crise, à procura de um novo paradigma civilizacional. Não interessa se a Sabedoria nos chega por palavras, por imagens, por sons, por movimentos ou pela contemplação do “jardim do mundo”. Vale a pena tão só aceitar, entender e praticar com humildade os seus atributos: “há nela um espírito inteligente e santo, / único, múltiplo e subtil, / ágil, penetrante e puro, / límpido, invulnerável, amigo do bem e perspicaz, / livre, benéfico e amigo dos homens, / estável, firme e sereno, / que tudo pode e tudo vê, / que penetra todos os espíritos, / os inteligentes, os puros e os mais subtis” (Sabedoria, 8: 22 – 23).

   Verdade seja dita que há também palavras que nos salvam ou que, pelo menos, nos consolam. Lembro, por exemplo, quanto me pacificou, há uns anos, a dedicatória inscrita por José António Falcão numa das suas mais belas obras (A a Z – Arte Sacra da Diocese de Beja, 2006): “Este livro é dedicado a todos os que, saindo do Alentejo, não o abandonaram”. Alentejano exilado por vontade alheia, na co-movente Península da Arrábida, tão simples frase teve a capacidade de cauterizar feridas ainda recentes de alguém que continuava a martelar a letra de um velho fado: “Abalei do Alentejo, / olhei para trás chorando. / Alentejo da minh’ alma, / tão longe me vais ficando”.

   Já tive oportunidade de manifestar a minha integral admiração pelo trabalho desenvolvido no Baixo Alentejo pelo Departamento do Património Histórico-Artístico da Diocese de Beja. Não vale a pena repetir razões, tantas elas são. É contudo, importante, sublinhar o seu exemplo clarividente, em áreas só aparentemente separadas da preservação e divulgação dos bens artísticos da Igreja Católica. Bastará recordarmos a sua abertura ao Outro e ao mundo poliédrico da Cultura contemporânea, a revitalização dos Caminhos de Sant’ Iago no sul de Portugal ou o Festival “Terras sem Sombra”, neste momento a decorrer na sua oitava edição. Mesmo no “exílio”, penso que todos os alentejanos se sentirão serenamente felizes ao verem a sua terra como palco de um evento musical com ecos espalhados pelo mundo fora.

   É belo o seu nome, “Terras Sem Sombra”. E ainda mais belo ao revelar, aos ouvidos de quem o saiba entender, a essência da espiritualidade do Alentejo – proposta ao Mundo. Para compreendermos esta “terra sem sombra”, tão minguada de gentes, é preciso meditar os dois primeiros versos da quadra que deu origem ao título: “O Alentejo não tem sombra, / senão a que vem do Céu.” Não tem sombra material. É quase um deserto (aquele deserto que tanto aproximou os homens de Deus, no confronto com o interior e o exterior do seu ser). Tem apenas a sombra “que vem do Céu” (como diriam os místicos islâmicos heterodoxos). Ou seja, o Alentejo possui a terra inteira dentro de si, porque toda a criação, aos olhos do crente, é uma “sombra de Deus”, uma manifestação da realidade divina. Abdicou – e transformou-se em rei de si próprio (como diria Fernando Pessoa por Ricardo Reis).

   Sem sombra divina, não teria alma. Por isso me permito afirmar que a música do espírito apresentada pelo Festival “Terras sem Sombra” revela, na ausência de matéria, uma outra sombra que é, no fundo, um símbolo da Vida, daquela que transcende a existência. Tem pois José António Falcão toda a autoridade para espicaçar os ouvintes do festival com um texto claro e perturbador na sua análise e nas suas propostas. Interpretando a espiritualidade alentejana como proposta e exemplo, afirma no programa do evento:

   “Se o ‘tempo dos guerreiros’ e o ‘tempo dos agricultores’ souberam reconhecer até que ponto a benevolência apaziguada e a violência extrema se podem cruzar na natureza, o ‘tempo dos mercadores’ entregá-la-ia a uma pilhagem sem precedentes, exacerbada pela industrialização , que conduz o planeta até à fronteiras do descalabro. […] Depois do caçador, do lavrador, do metalurgista, do comerciante, emerge cada vez com maior nitidez a imagem do cuidador de um jardim que, como arquétipo, se projecta sobre os quatro pilares da sustentabilidade: ambiente, economia, sociedade, cultura. […] Este jardineiro […] vislumbrado [por Charles Péguy] não será, afinal, o mesmo que apareceu a Maria Madalena, junto ao túmulo, após a Ressurreição […]?

   Ameaçado e em grande perigo, o planeta só salvará se os homens de boa vontade souberem interpretar “a sombra que vem do Céu” e cuidarem do “jardim do mundo” em paz e harmonia. É, para isso, necessário, acolhermos o mistério da Vida e percebermos que esse acolhimento só acontecerá se abrirmos no nosso interior o espaço necessário, entrevendo – como refere J. A. Falcão – “a essência criadora do nada”, tão próxima quando vivemos a boa, a bela e a verdadeira terra do nosso Alentejo.

 
Ruy Ventura

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