domingo, 7 de abril de 2013

Posted by Regina Botas: "É para isso que servem os poetas"

 
   A poesia é um género literário que tem vindo a cair em desuso entre as gerações mais novas da sociedade portuguesa. Actualmente, os nossos jovens acham muito mais interessantes as mensagens codificadas do telemóvel, do Facebook e do Twitter do que os versos de Camões nos Lusíadas; preferem pequenas publicações com estados de espírito positivos às meladices depressivas de Florbela Espanca ou os letreiros anti-corrupção política aos hinos de liberdade de Manuel Alegre. As frases bombásticas com preceitos de vida alternativos parecem ter-se tornado mais atraentes do que os pressupostos filosóficos da poesia de António Gedeão. O que conta é o impacto auditivo das publicações e não a profundidade que eventualmente transportam consigo. O reinado da comunicação social, rápida e instantânea, à distância de um simples clique, parece ter-lhes tirado a vontade de sentir e de meditar profundamente nas situações; roubou-lhes a capacidade de traduzir os sentimentos numa linguagem metafórica e deu-lhes uma falsa noção de que o explícito é que conta mesmo que chegue a ser obsceno. Por outras palavras, priva-os da beleza do subtil e do simbólico que expressa a alma humana.



   Quando dou aulas de História das Religiões faço sempre questão de abordar a temática da poesia como o fundamento literário de inúmeros textos sagrados nas várias tradições religiosas da Humanidade. E para ilustrar isso com clareza recomendo aos meus alunos que vejam o filme de Robert Zemeckis chamado Contacto com Jodie Foster e Mathew McCounaghey nos principais papéis.
 
   À primeira vista, a minha sugestão parece absurda pois o filme conta a história de uma cientista que, desde a mais tenra idade, acredita na existência de extraterrestres. De facto, isso tem mais a ver com a Ciência do que com a Religião. Todavia, não podemos esquecer que, no universo judaico-cristão do mundo Ocidental, a Ciência esteve desde sempre dependente ou ligada à fé. Vejam-se os grandes debates à volta das primeiras autópsias ou as polémicas decorrentes da manipulação genética e fertilização in-vitro. E isto para não falar da eutanásia ou do aborto. Tudo, práticas que a Igreja rejeita à luz dos princípios da fé cristã e que leva determinados grupos sociais a agir em conformidade – há médicos, enfermeiros e cientistas que fazem objecção de consciência, activistas que desenvolvem formas de luta radical, organizações que promovem campanhas de sensibilização e governos que reformulam as leis do seu país. Quer dizer que, directa ou indirectamente, as descobertas, os métodos ou os procedimentos científicos acabam por ser regulados pela religião. E isso é o que nós vemos acontecer no filme Contacto.

   Eleanor Arroway (Ellie) é uma astrónoma dedicada que, depois de muitos anos de investigação e luta, consegue captar um sinal extraterrestre da estrela Vega. Esse sinal contém informações sobre a primeira grande transmissão televisiva dos Jogos Olímpicos em Berlim, realizada no tempo de Hitler, mais uma série de instruções essenciais à construção de uma nave espacial. Quando esta é finalmente construída, Ellie, apesar de todo o seu mérito pessoal na descoberta, tem de enfrentar algumas dificuldades, para conseguir realizar a viagem.

   Uma delas é a polémica da sua falta de fé. A comissão encarregue de escolher uma pessoa para representar a raça humana em Vega reconhece que ela seria o candidato ideal. Porém, o simples facto de não acreditar num Ser supremo como acontece com 95% dos habitantes do planeta, faz com que ela seja rejeitada e outro vá em seu lugar.

   Entretanto, a primeira tentativa de lançamento da nave no espaço, falha. Uma segunda nave é construída e, desta vez, a escolha recai sobre Ellie. Tudo a postos, com os motores de ignição a vibrar intensamente, ela atravessa a barreira do espaço, do som e do tempo à velocidade da luz e tem aquilo que habitualmente se chama de “experiência limite”. Quer dizer, passa por uma experiência que vai alterar para sempre, a sua concepção científica da realidade. Ela dá de caras com o Universo e subitamente percebe que está diante de uma realidade muito maior do que ela própria, uma realidade que não só escapa como também não se reduz à objectividade dos métodos científicos.

-   Aaaahh… Que lindo! Diz ela absolutamente extasiada ao contemplar a totalidade do espaço sideral. Eu não sabia! E, quase sem fôlego, acrescenta logo a seguir, Não tenho palavras. Deviam ter enviado um poeta...

   Ellie diz isto num impulso de desespero, quando subitamente se dá conta de que há acontecimentos que estão para muito além da linguagem comum. Coisas que se sentem e experimentam mas não podem ser recriadas com fórmulas matemáticas ou agentes químicos em laboratório; coisas pequenas e simples como a beleza de uma paisagem ou os sentimentos que nos invadem; e coisas grandes e complicadas como Deus, esse Ser a quem chamamos Criador; realidades extra-sensoriais que só podem ser descritas mediante metáforas, símbolos e comparações; situações que passam por nós e precisam de ser verbalizadas para continuarmos a viver.
 

   Sim, deviam ter enviado um poeta, porque a ela lhe faltavam palavras para traduzir o intraduzível. A sua imaginação tinha sido formatada pelo materialismo. Não conseguia lançar-se na aventura da subjectividade para descrever a sua experiência, com uma simplicidade dúbia. Como fez o apóstolo João ao falar de Cristo: O que era desde o princípio, o que vimos com os nossos olhos, o que temos contemplado, e as nossas mãos tocaram da Palavra da vida. (1 João 1;1) Quem pode tocar numa Palavra? Ninguém. E como pode essa Palavra ser vida? Impossível. Mas ele não se deixou aprisionar por isso. Aceitou o desafio da impossibilidade e descreveu o Filho do Deus vivo com as metáforas que melhor conseguiam expressar o Seu significado real. É para isso que servem os poetas! Para mergulharem nas profundezas da linguagem e descobrirem palavras que conseguem transmitir aquilo que lhes vai na alma.

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