REGRESSO
Não não mereço esta hora
eu que todo o dia fui habitado por tantas vozes
que exerci o comércio num mercado de palavras
Não mereço este frio este cheiro tudo isto
tão antigo como os meus olhos
talvez mais antigo que os meus olhos
BELO, Ruy, Obra Poética, vol. 1 [Aquele Grande Rio Eufrates], (1.ª Ediç.) – Presença, Lisboa, 1981.
Poesia Portuguesa – Ruy Belo
« Era o Verão de 1980, a memória pode trair, lembro-me de, tão puto, acabar a vender polvos aos restaurantes de Peniche para comprar o bilhete de regresso a Lisboa; mas não era o volume 2 da ‘Obra Poética de Ruy Belo‘, da Presença – organização e posfácio de Joaquim Manuel Magalhães - que teria comigo (o primeiro tinha, de certeza), nessas férias de revelações. ‘Transporte no Tempo’ estava lá, comigo, mas na edição da Moraes, que terei guardado num de três lugares, sendo um outro possível, um empréstimo perpétuo. Na introdução ao livro, Ruy Belo escreve um texto, ‘Breve Programa para Uma Iniciação ao Canto‘, onde a indizível condição da mortalidade (do ‘não pertencer a este mundo’) se inscreve com um carácter quase premonitório, quase programático. Termina assim, o texto: “(…) O poeta, sensível e até mais sensível porventura que os outros homens, imolou o coração à palavra, fugiu da auto-biografia, tentou a todo o custo evitar a vida privada. Ai dele se não desceu à rua, se não sujou as mãos nos problemas do seu tempo, mas ai dele também se, sem esperar por uma imortalidade rotundamente incompatível com a sua condição mortal, não teve sempre os olhos postos no futuro, no dia de amanhã, quando houver mais justiça, mais beleza sobre esta terra sob a qual jazerá, finalmente tranquilo, finalmente pacífico, finalmente adormecido, finalmente senhor e súbdito do silêncio que em vão tentou aprender com as palavras, finalmente disponível não já tanto para o som dos sinos como para o som dos guizos e chocalhos dos animais que comem a erva que afinal pôde crescer no solo que ele, apodrecendo, adubou com o seu corpo merecidamente morto e sepultado.” »
© Duarte Belo
© Duarte Belo
SÚPLICA
O outono demorou-se no mundo
A juventude há muito despediu
a primavera da primeira ave
Respiro as lágrimas das raparigas
recordo-me do seu odor nocturno
Escuto o movimento lento da ramada
esqueci a escada habitual do dia-a-dia
a cortina da chuva corre-se de novo
Nesta manhã de outono aluviões da vida
murmuram-nos mulheres minuciosas
O ombro da colina ergue o nevoeiro
na madrugada não cantam melros
A areia bebe cheia a chuva enquanto
nós infinitamente nos distanciamos
de quanto – diz a santa – desejamos
Aonde está a mãe da minha infância?
Talvez com ela tudo começasse
É nos fins do verão alguém morreu
foi-se a ferocidade das cigarras
no caminho das tílias percorridas
Deixo cair as mãos pois nem me restam essas
aves do mar que a tempestade impele
em tempo de equinócio para a costa
É o cabo do mundo é o fim do ano
a era da perfeita culpabilidade
Respiro já os meus últimos dias
Sobre este céu nenhuma ave adeja
Que a terra humedecida me proteja
Ruy Belo, in Transporte no Tempo, p. 14-15, Obra Poética de Ruy Belo, volume 2, Editorial Presença, Lisboa, 1981.
© Duarte Belo, Assírio & Alvim [D.R.]
Para ti:
ResponderEliminarPôr do Sol na Boa Nova
Mar alma na tarde morta
que cortas dedos na luz
abro-me todo: sou porta
que só contigo transpus
(Ruy Belo)
Obrigado pela sua lembrança. Minha resposta, Elaine, vai com mais um poema deste malogrado poeta: Ruy Belo (Rio Maior 27-2-1933, Queluz 8-8-1978)
Eliminarhttp://youtu.be/uX1zQboxAAk