quarta-feira, 24 de setembro de 2014

Arte e Melancolia
 
O pintor está à esquerda do quadro de cabeça baixa, o braço esquerdo apoiado na cadeira, as pernas cruzadas, a tela em branco. Um mundo absolutamente sem vida está diante dele: sua própria tela. De suas costas sai um exército de criaturas humanas, quase todas armadas de lanças e punhais, crianças, homens, velhos. Esse batalhão luta, mas é atingido, enfrenta, mas é impedido, e à medida que o olhar caminha para o centro da imagem, a força da tropa se reúne e se dispersa ao mesmo tempo. Vemos as figuras perto de uma grande janela serem como que rebatidas por outra força, uma força cuja imagem se apóia no outro lado do parapeito, a mão direita próxima ao rosto coberto, a mão esquerda a empurrar uma das janelas de vidro: a imagem dessa força está toda vestida de negro. Melancolia é o nome da pintura do polaco Jacek Malczewski.

Jacek Malczewski, Melancolia, 1890-1894

Melancolia em grego quer dizer literalmente bílis (cholé) negra (mélas). Há uma tradição desde Hipócrates (460-377 a.C.) que pensa esse fenómeno tanto físico quanto psíquico: “Se tristeza e medo duram muito”, escreveu o médico, “tal estado é melancólico”. Em tal teoria médica, a saúde ou a doença dependeriam do equilíbrio ou desequilíbrio dos quatro humores: sangue, fleuma, bílis amarela e bílis negra. Um pouco mais tarde, Aristóteles diz ser a bílis negra um humor que altera do muito frio ao muito quente e vice-versa. E por ser inconstante a potência dessa mistura, inconstantes são os melancólicos, já que o humor frio geraria a tristeza e a apatia, ao passo que o humor quente produziria a loucura e a exaltação sexual. A constância dessa inconstância faria o homem de génio.
 E o Problema XXX de Aristóteles é se perguntar por que os homens de exceção são melancólicos. E melancólicos teríamos de entender não apenas tristes, mas impacientes, esquivos, temperamentais, violentos algumas vezes. A arte para o artista talvez seja o lugar de luta e acalento da melancolia, arte sem a qual sua vida e seu humor se tornam insuportáveis. No final do século XIX, Nietzsche fala de uma fisiologia da arte. O que importa saber é como dos humores do artista, e da luta entre seus instintos, acontece algo cujo significado se põe além do próprio artista como indivíduo humano, fadado a paixões e a ocupações da vida ordinária.
A Melancolia de Malczewski abre a janela para uma paisagem que parece outra pintura. Apenas alguns homens se aproximam da personagem de negro, mas mesmo esses homens,  que lembram sábios, profetas e religiosos, não chegam a tocá-la, nem tentam vencê-la. Somente um deles levita sem ser impelido. Está logo atrás da mulher vestida de negro: é uma exceção. Toda a luta contra a melancolia parece inútil. O mais sábio dos sábios talvez consiga, no máximo, manter uma proximidade que revela o reconhecimento da distância de forças: de um lado, a necessidade de meditar, de outro, a bílis que ao mesmo tempo entristece a alma e inquieta o corpo. A imagem da pintura mostra a luta na fronteira de uma obscuridade que não é apenas a do pintor em seu ateliê, mas a de nossa própria vida. Não escolhemos a melancolia. Ela é quem nos escolhe. Não pede licença, não avisa quando vem, nem quando vai embora. Podemos ocultá-la com centenas de distrações que o mundo cada vez mais oferece. Mas ela retorna mais insistentemente ainda, e mais forte do que esperávamos. E para aquele que pressente uma tarefa muito própria, como sua tarefa muito própria, não há escapatória. Terá de lutar menos contra a bílis negra do que com ela, acostumar-se a recebê-la em sua morada: é o caso do artista. 
“Sempre voltas, Melancolia, / Mansidão da alma solitária. / Por fim arde um dia dourado,” canta o poeta Georg Trakl em 1913 (De profundis, Iluminuras, 1994).

Giorgio De Chirico, Melancolia, 1912

Há outra pintura, feita em 1912, com a qual podemos aprender sobre melancolia. Uma estátua feminina no centro da cena: o cotovelo sobre um apoio, a mão junto à cabeça inclinada. Mais ao fundo, duas figuras que parecem distantes de um mundo quase inumano. Não sabemos se vão ou vem, mas vemos suas sombras se projetarem além da linha do prédio ao lado do qual passam. No pedestal da estátua vemos uma inscrição: Melanconia. A luz entra da esquerda para a direita na tela, um pouco inclinada, e vemos ainda a sombra de um pilar no primeiro plano, a sombra da estátua no centro e, entre uma e outra, uma sombra que não sabemos de quem seja. Apenas nos dá a impressão de estar à frente do pilar mais próximo. Nessa sombra talvez esteja todo o mistério da pintura. Ela descola nosso olhar para um lugar que encobre quem ali possa estar sem que possa ser visto. A melancolia da estátua depende dessa forma escura e, ao mesmo tempo, a silhueta de alguém nesse mundo estático contempla a estátua, cuja veste cobre uma dor que se volta para si, uma dor humana, aquecida por uma luz em alusão ao pôr-do-sol. É provável que estátua e sombra encontrem seus olhares no desassossego de uma única e mesma intimidade. A bílis negra é a sombra que a estátua reconhece e a estátua é a melancolia que a sombra pressente. O assombro de uma mesma duração: aqui a eternidade de uma tristeza, ao fundo, a passagem do tempo dos passantes, no instante de um pôr-do-sol.   Um ano após essa pintura, De Chirico escreve: “Para tornar-se imortal, uma obra de arte deve sair completamente dos limites do humano: a lógica e o bom senso só farão interferir. Desse modo ela se aproximará do sonho e da mentalidade infantil”.

Edvard Munch, Melancolia, 1895

                Em 1917, Freud escreve um belo ensaio chamado Luto e melancolia. Ambos os estados envolvem um longo trabalho interno para separar a libido do objeto perdido. No caso do luto sabe-se o que foi perdido, no caso da melancolia não, mesmo que o sujeito saiba quem tenha perdido. Um dos sintomas do melancólico é um intenso desprezo por si mesmo. “No luto, é o mundo que se torna pobre e vazio; na melancolia, é o próprio ego”. Na fronteira da doença, o melancólico pode estar bem próximo de compreender a si mesmo. Freud aprofunda muitas questões, mas poderíamos lhe perguntar como da pobreza e do vazio do ego nascem grandes obras de arte. Desinteressado de si e incapaz para a vida, pode o melancólico ocupar a força que lhe resta com algo ainda não feito no mundo, pouco importando o interesse alheio. Claro, o que faz a grande arte do artista não é pouco, mas são muitas as circunstâncias, a começar por sua obstinação de criar algo além da média menos ou mais medíocre. E nisso vai uma vida que, às vezes, vem precoce como a do poeta Rimbaud. Embora a intuição da poesia não exija tanta técnica quanto, por exemplo, a pintura o exige, as artes dependem de uma e outra, intuição e técnica. E no fundo de ambas, um silêncio que a todos nós pertence, muitos dele fogem, poucos o recebem, e menos ainda são o que transformam o incómodo de ser em obra de arte capaz de fazer alguma diferença para si, quando não para o mundo.
                Em nossos dias tendemos a negar o que aparentemente é negativo, tal como a melancolia. Mas não seria terrível um medicamento que nos deixasse sempre artificialmente bem, fossem quais fossem as circunstâncias? E se ao contrario de um sintoma de algo em falta ou anormal, a melancolia (ou a depressão ou a bipolaridade, nos termos médicos de hoje) for o princípio de uma nova força e a exigência de outra direção da vida à própria vida? Na história da arte, sem contar a expressão não figurativa, há várias imagens que mostram a melancolia tal como a extremamente simbólica de Albrecht Dürer (1471-1528) e a expressionista de Edvard Munch (1863-1968). Figuras que repetem a mão apoiada na cabeça quase sempre inclinada, como sinal de introspecção e afastamento do mundo. É curioso perceber como tais imagens também estão associadas à lembrança do pôr-do-sol. Um dos momentos mais belos de O pequeno príncipe é quando o narrador diz que compreende pouco a pouco aquela pequena vida melancólica. Diante de um pôr-do-sol, o pequeno príncipe conta ao amigo aviador que uma vez viu o sol se pôr quarenta e quatro vezes, seguidamente, já que no seu pequeno planeta bastava-lhe trocar a posição da cadeira para assistir tal espetáculo quantas vezes quisesse. “Tu sabes... quando se está assim triste a gente ama os pores-do-sol.” E o narrador lhe pergunta: “O dia das quarenta e quatro vezes tu estavas assim tão triste?”. Mas o pequeno príncipe não responde.

Dürer, Melancolia I

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