segunda-feira, 10 de fevereiro de 2014

Alberto Manguel: As mil e umas viagens

Neverland

Alberto Manguel cartografou os seus "lugares imaginários" num dicionário, agora com edição portuguesa, na Tinta-da-China. Conheça aqui a obra

  Ao contrário de Portugal e de muitos outros países do mundo, na Ilha da Civilização o Chefe de Estado é uma figural consensual. Todos respeitam o seu silêncio e as suas decisões nunca geram contestação. Na realidade, nesta monarquia da Polinésia, avistada pela primeira vez pelo escritor Henry-Florent Delmotte, e hoje muito popular entre os leitores, tudo corre bem. Arborizada e montanhosa, a Ilha da Civilização é dirigida por um rei em madeira de jacarandá. Esta particularidade explica muito da unanimidade real, mas há mais. "O rei é operado de uma forma mecânica e pode assinar até 30 decretos de uma só vez; assina em inglês, numa bela caligrafia", descreve o autor de Voyage pittoresque et industriel. Já se vê que infinitas são as vantagens deste sistema, se calhar não muito distante daquele que certos países seguem quando se limitam a cumprir ordens externas. Por um lado, "evita todos os problemas suscitados pela sucessão e por mudanças de dinastia", esclarece Delmotte. Por outro, "significa também que os custos da Casa Real se elevam a apenas 50 francos por ano em óleo e lubrificante".Este é um dos muitos destinos que Alberto Manguel e Gianni Guadalupui compilaram no Dicionário de Lugares Imaginários, um magnífico guia de viagens por entre as mais fantásticas criações da imaginação humana. E se nem todas as paragens têm esta acutilância política - na Ilha da Civilização cada ministro tem um nó corredio à volta do pescoço e qualquer eleitor pode puxar a corda até ele se estrangular - nenhum desiludirá o leitor ávido de aventura. Bem sentado no sofá, na cama ou em frente à lareira, este é um convite à leitura, a mais extraordinária forma de viajar, como assegura Alberto Manguel. 
  Da mesma opinião é Carlos Vaz Marques (CVM), coordenador da colecção de Literatura de Viagens da editora Tinta-da-China. De resto, integrar o volume nessa série de livros não deixa de ser uma "provocação", que o jornalista assume com gosto. Este é um livro sobre lugares imaginados. Só existiram na cabeça dos escritores que os inventaram, continuando hoje a existir na mente do leitor. Alguns resultaram de viagens efectivamente realizadas, outros de pura efabulação. No entanto, assegura CVM, não são menos "reais". "Viajar com a Literatura é ir além do aspecto tangível dos lugares físicos que conhecemos e vemos nos mapas", afirma. "A viagem não é apenas uma deslocação no espaço, é mental também." Do cinema, do teatro, da ópera, mas na sua esmagadora maioria da literatura, aqui estão muitos dos lugares com que nos habituámos a sonhar. 
  Da Ilha da Civilização à Ilha do Tesouro, de Stevenson. Da Terra do Nunca, dos livros de James Matthew Barrie, à Terra-Média, de Tolkien. Do Deserto dos Tártaros, de Dino Buzzati, ao Deserto do Sudoetes, de Tung-Fang Shuo. Do maravilhoso País de Alice, de Lewis Carrol, ao admirável Mundo de Oz. Para cada destino, Manguel e Guadalupi resumiram a informação essencial, o que incluiu descrições sobre a fauna e flora, breves sinopses históricas, análises de comportamentos e até conselhos para viajantes.
  "Cada entrada deste dicionário é um autêntico microconto", sugere CVM. "Contudo, o método deles não foi o de acrescentar coisa nenhuma, nem de fazer literatura. Escrevem a partir dos elementos que o livro em causa dá para caracterizar o que foi imaginado". Lendo-o de fio-a-pavio ou abrindo-o ao acaso, ninguém ficará indiferente a estes lugares imaginários. Já no passado assim acontecia, como Alberto Manguel lembra no prefácio que escreveu para a edição portuguesa. "É seguindo as geografias imaginárias que construímos o nosso mundo: o resto é apenas confirmação", afirma o autor de Uma História da Leitura. "Antes de ver os seres do Novo Mundo, Cristóvão Colombo já sabia o que iria encontrar, pois lera Aristóteles e Plínio e os bestiários medievais por eles inspirados, de modo que ao ver, na sua terceira viagem, ao largo da costa da Guiné, os manatins semelhantes a focas, registou no seu diário com uma pontinha de desapontamento: 'hoje vimos três sereias aproximarem-se do costado da embarcação, mas não tão belas como as descrevem'. Antes de ver o Novo Mundo, Colombo já dispunha de um vocabulário para designar os seus prodígios". 
  O leitor contemporâneo terá idêntica sensação. Mas neste livro encontrará referências suficientes para compreender a sua surpresa. Ou o seu desapontamento. A pouco saberão as referências a autores de expressão portuguesa. Da Abadia da Rosa, de Umberto Eco, ao Zyundal das Ilhas da Sabedoria de Alexander Moszkownki, são escassas as referências. Apenas duas e ambas na letra C. A Cidade dos Cegos, de José Saramago, onde o "clima é extremamente desagradável: o calor é opressivo apesar das chuvas torrenciais, fazendo com que se ergam vapores tóxicos dos montes de lixo. Os guarda-chuvas não são fáceis de encontrar". E Calemplui, situada ao largo da costa da China e avistada por Fernão Mendes Pinto na sua Peregrinação. Trata-se de uma ilha "rodeada por uma muralha de mármore de 26 palmos de altura construída com lajes tão perfeitas que a parede parece uma só peça". Muitos lugares imaginados pela língua portuguesa faltam neste Dicionário. Se é certo que nem sempre houve uma apetência nas literaturas lusófonas para a escrita fantástica, aquela que segundo CVM mais propiciam este tipo de criações, haveria por onde escolher. Alberto Manguel reconhece a omissão: "É uma das muitas falhas deste Dicionário. Se fizesse o livro agora incluiria seguramente livros do António Lobo Antunes e do Gonçalo M. Tavares, particularmente o seu bairro. São dois grandes escritores". Se um projecto como este - "borgiano", segundo Vaz Marques - pode ser avaliado pelo que lhe falta, mais importante é sublinhar o que integra. E cerca de 1200 entradas, ao estilo das gazetas do século XIX, profusamente ilustrado e com uma prosa limpa e convidativa, muitas são as viagens que se podem iniciar a partir destas páginas. Até porque, como diz "a imaginação salva a realidade do reino inefável dos fantasmas".


Alberto Manguel, DICIONÁRIO DOS LUGARES IMAGINÁRIOS (Tradução de Carlos Vaz Marques e Ana Falcão Bastos), Tinta-da-china, 1040 pp, 29 euros

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