domingo, 14 de abril de 2013

»Fausto« de Alexander Sokurov

Vi hoje este filme, uma adaptação livre do chamado "Primeiro Fausto" (Erst Faust) de J. W. Goethe : "Fausto" é um hino e uma elegia; uma reflexão sobre a ambição e o desejo, sobre a condição humana e o seu esforço de alcançar, tanto os prazeres da vida, como aquilo que há de mais inalcançável. Um filme estranho, mas comovedor; uma fotografia entre o sépia e o amarelo das fotos antigas guardadas nos sótãos das casas ilustres - um esplendor. Um filme marcante e difícil de esquecer. 



texto de Fátima Pinheiro, in Expresso 13 de Abril de 2013

O realizador russo Alexander Sokurov "esteve" ontem (dia 12 de Abril) no Nimas. O seu filme "Fausto" (Leão de Ouro 2011) estreou com uma apresentação de João Lopes. O crítico de cinema lembrou que este podia ser visto como o prolongamento duma vontade de filmes históricos, o quarto título de um série de filmes biográficos: Adolf Hitler em "Moloch" (1999), Lenine em "Taurus" (2000), e Hirohito em "O Sol" (2005). Com palavras de quem sabe, e de quem sabe o que iríamos ver, teve a subtileza de não "estragar" a surpresa, e de notar apenas alguns pontos, nomeadamente que Fausto (Johannes Zeiler), o homem que vende a alma ao diabo, não tem a vida fácil. E que o olhar de Sokurov, apesar da herança cultural do mito, não copia ninguém. Que foi rodado na República Checa. Por fim o realismo e a atualidade do filmevende-se a alma ao diabo; adora-se dinheiro e as relações humanas pervertem-se. Ficamos foi a saber, ainda, que Putin também entra no filme.
Que os filmes como este nos fazem felizes, já calculávamos, agora a qualidade do que vimos, excede qualquer expectativa. Uma maravilha , mais que uma sétima arte. Genial e para render.
"Fausto" tem a marca de quem o fez. Uma cor inconfundível. Cada imagem é um quadro. O tempo pára. Tudo se passa em nós numa provocação constante ao nosso tempo. Como disse Sokurov em Veneza: "Fausto" trata dos problemas humanos; da essência humana, do que é vida, do que é a morte. E no filme alguém diz: "todas as coisas nascem e morrem, só o homem tem um fado incerto!"; "perdi o meu coração"; "no princípio era o Verbo, o que quer isto dizer?" A paixão de Fausto por Margarete (Isolda Dychauk) vive-a louco num curioso ninho de  penhores, onde encontra um agiota ...Portanto, no filme o tempo pára, para que a vida possa acontecer. Para que haja tempo de ver com realismo os horrores das cenas que vão rodando. Sokurov sabe fazê-lo à luz de um filtro em que até o mal, aparece numa beleza comovedora, atractiva, que leva a perguntar: "onde vais?" (ouve-se numa cena determinante do filme).
Sokurov não nos mostra o sentido da vida de bandeja. Coloca-nos entre duas posições "que refiro nalgumas falas, por vezes em voz off, que registei ao serem dadas em imagens secas, disformes, inverosímeis, horrendas, infernais, mas cheias de profundidade, e pontos de interrogação". Cadáveres vivos, estilizados e gozões, para quê? Sempre a espantar.
Então, por um lado Sokurov serve o prato do desespero, do cepticismo: "...solidão total e nenhuma esperança de salvação"; "...quando não podemos ter uma coisa duvidamos da sua existência". O outro prato é bem diferente. A certa altura alguém diz "ACABOU-SE!". Vender a alma ao diabo não compensa. O pai da mentira comenta-a assim: " 'Acabou-se', que palavra estúpida!". "Acabou-se" foi o grito inteligente de uma liberdade de quem se sentia a viver uma infelicidade visceral. Não sei por onde vou, sei que não vou por aí, lembrei-me deste dizer Régio. A imagem final deixa-me colada para sempre àquele écran. Mesmo.
Não há palavras, nem mensagens. Cinema e vida são um só, lembra sempre Manoel de OliveiraOs filmes bons, como este, põem é o "eu" a saltar. Foi assim que voei da 5 de Outubro até casa para escrever estas linhas que peço que rasguem. Vejam é o filme porque "quem" conta é a Beleza que no filme nos acende a carne. Como nos disse João Lopes nas suas palavras iniciais: vocês não são espectadores acidentais, vêm aqui com uma motivação. Deixar os olhos serem inundados por aquela câmara mostra-me um "eu" e um mundo novos. Ainda bem que Putin se encontrou no Kremlin com Sokurov para o ajudar a arranjar financiamento. Foi determinante essa hora de conversa. Curioso que o grande "Alexander Nevski" tenha sido encomendado por Estaline.
A terminar, recordo que Sokurov já esteve entre nós e afirmou, numa entrevista ao querido Bénard da Costa: "os portugueses têm uma genialidade muito especial". Que ela nos renda.

Ler mais: http://expresso.sapo.pt/o-fausto-de-sokurov-tambem-e-de-putin=f800044#ixzz2QSiKxve1



Genial diretor russo reinventa o maior mito do Ocidente

por Francisco Taunay in  "Opinião e notícia" (Brasil)


Este é o 15º filme do genial e muitas vezes enfadonho diretor russo Sokurov. Vencedor do Leão de Ouro em Veneza, o filme é uma adaptação da própria lenda do Fausto, bem diferente da versão mais conhecida, de Goethe. Neste filme, ao invés de vender a alma ao diabo em busca de conhecimento, o protagonista é um homem com objetivos menos definidos, como conquistar Margarida, talvez mais por um desejo sexual do que paixão, e obter dinheiro para realizar suas pesquisas. Nesse sentido, a figura do Mefistófiles, convertida em um mero agiota, também traz o Fausto para um outro plano, diferente daquele que foi canonizado no Ocidente.
Este proto-Fausto relata a possível história do verdadeiro Doutor Fausto, que teria vivido na região da Germânia nos séculos XV e XVI. As informações comuns entre as diferentes fontes é que Dr. Fausto teria estudado para tornar-se alquimista, astrólogo, mago e vidente. O texto da sinopse do filme traduzido para a Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, revela bem o que é o personagem: Fausto é um pensador, um rebelde e um pioneiro, mas também um ser humano anônimo feito de carne e sangue governado por impulsos internos, cobiça e luxúria.
O impacto causado pela fotografia, a pedra de toque dos filmes do diretor russo, é potencializado pela direção de arte impecável: na primeira cena, por exemplo, vemos Fausto dissecar um cadáver, com todos os aparatos medievais. O clima lembra o quadro de Rembrandt, A lição de anatomia do Doutor Tulp. A capacidade que Sokurov tem de gerar imagens sublimes remete a outro expoente da cinematografia russa, Andrei Tarkovski. No entanto, apesar da beleza, o espectador pode se incomodar com os ritmos lentos, e a retórica intelectualizada tanto do Fausto, como dos outros filmes do diretor.

Foi o meu caso, quando assisti Arca Russa, um filme que é feito sem cortes, em um gigantesco plano sequência, que conta a história da Russia ao percorrer um museu de St. Petersburgo. O filme é basicamente um sonífero poderoso, apesar da fotografia, cenários e sonorização geniais. Não é o que acontece com esteFausto, bem mais palatável, apesar de ser incongruente com a estória mais conhecida do mito.
Ao que parece, ao se debruçar sobre Fausto, Sokurov busca um olhar contemporâneo, um viés que mostra um ser humano no passado, que vive tal qual no presente, no sentido da falta de objetivos altruístas. Não somente o individualismo é mostrado no filme, como também uma falta de visão do futuro: aprisionado em um eterno presente, o homem contemporâneo é incapaz de imaginar um futuro transformado. Bombardeada por todos os cantos pelos mais diferentes tipos de informação, nossa vida é como um filme que não possui nenhuma reviravolta até o final: podemos até pensar em um futuro tecnológico, mas não em um futuro onde o mundo, a ética, e os afetos sejam transformados.
Fora de toda filosofia da história, que aponta para um futuro bom ou ruim, mas diferente do presente, ficamos a olhar para a frente aprisionados entre o real e o virtual, sem a capacidade de aprender com o passado. Esse confuso estado das coisas talvez seja fruto da própria ambição do homem, uma ambição fáustica, de dominar a natureza. Envolto pelo desejo de possuir e modificar as coisas à sua maneira, o ser humano acabou por ser dominado por elas; foi coisificado.
(Obs: seguiu-se, na transcrição deste texto, a norma ortográfica usada no Brasil)

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