terça-feira, 11 de junho de 2013

M. Hermínio Monteiro e Camilo Pessanha

Manuel Hermínio Monteiro — 10/09/1952 - 03/06/2001


Há muitos e muitos milhares de anos, a poesia aproximou-se do homem e tão próximos ficaram, que ela se instalou no seu coração. E começaram a ver o mundo conjuntamente estabelecendo uma inseparável relação que perdurará para sempre. Não demorou muito a que a poesia se emancipasse, autonomizando-se. Como uma rosa de cujas pétalas centrípetas emana a beleza e o mais intenso perfume, sem nunca prescindir da defesa vigilante dos seus espinhos, assim cresceu livre a poesia carregada de silencioso mistério e sedução.
Evitou sempre a vaidade. Mas o vento da história, inapercebidamente, por vezes, demorou-se nela libertando o seu perfume, soltando os seus enigmas, fazendo-a avançar com todo o esplendor. E nada existe que a poesia não tenha experimentado, desde o mais recôndito silêncio do deserto, ao fragor das batalhas mais sangrentas. Da mais humilde das intimidades, ao luxo sinuoso do palácio. Com o tempo, e já depois da comunhão primordial, era o homem, por necessidade de uma comunicação maior, que a procurava e lhe abria o coração, até que ela, muito discretamente, voltava a estremecer no seu sangue.
Poesia e homem criaram assim uma cúmplice e indissociável relação por todo o mundo, embora a História pouco se tenha disso apercebido. Hoje sabemos que haverá sempre seres humanos que a reconhecem pela substância do seu silêncio. Pelo tempo e lugar do seu rigor de ave de arribação. Pelo seu fulgor. Pelo seu perfume. Pela riqueza inesperada das suas sugestões. Com um pequeno gesto os poetas soltam o seu pólen que, levado pelas palavras vai eternamente fecundando os arcos da beleza que erguem o universo e o põem em comunicação com Deus.

Manuel Hermínio Monteiro na sua introdução ao livro «Rosa do Mundo — 2001 Poemas para o Futuro». 


CAMILO PESSANHA ( 7 de Setembro de 1867 - 1 de Março de 1926 )



AO LONGE OS BARCOS DE FLORES

Só, incessante, um som de flauta chora,
Viúva, gracil, na escuridão tranquila,
— Perdida voz que de entre as mais se exila,
— Festões de som dissimulando a hora.

Na orgia, ao longe, que em clarões cintila
E os lábios, branca, do carmim desflora…
Só, incessante, um som de flauta chora,
Viúva, gracil, na escuridão tranquila.

E a orquestra? E os beijos? Tudo a noite, fora,
Cauta, detém. Só modulada trila
A flauta débil… Quem há-de remi-la?
Quem sabe a dor que sem razão deplora?

Só, incessante, um som de flauta chora…

Camilo Pessanha in «Clepsydra» (posfácio e fixação do texto de António Barahona)


VÉNUS
II 
Singra o navio. Sob a água clara 

Vê-se o fundo do mar, de areia fina... 
_ Impecável figura peregrina, 
A distância sem fim que nos separa! 
Seixinhos da mais alva porcelana, 
Conchinhas tenuemente cor de rosa
Na fria transparência luminosa 
Repousam, fundos, sob a água plana. 
E a vista sonda, reconstrui, compara, 
Tantos naufrágios, perdições, destroços! 
_ Ó fúlgida visão, linda mentira! 
Róseas unhinhas que a maré partira... 
Dentinhos que o vaivém desengastara... 
Conchas, pedrinhas, pedacinhos de ossos..

Camilo Pessanha, in 'Clepsidra'

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