domingo, 9 de junho de 2013

«Oração» de Leonardo Coimbra

Oração

Eu adoro e temo o senhor meu Deus, porque Ele é doce e terrível.

Só Ele é: e tudo quanto existe assenta na sua mão poderosa.

Ele espalhou os mares sobre a face da terra e arremessou as montanhas para as alturas dos céus.

Ele pode apertar em sua mão, aniquilando-os, os mundos que uma vez dispersou pelo Espaço.

A voz do trovão e do relâmpago, os claróes da terra incendiada, as lavas que vomitam as feridas da terra, os ventos galopando cortantes, a terra tremendo em seus alicerces e os mares expulsos de seus leitos não custam um estremecimento à sua tranquilidade terrível.

Ele manda, e, no Espaço, os mundos chocando-se fazem um formidável dilúvio de fogo; Ele manda e dos mais profundos pélagos surgem os dorsos corcovados dos planetas; Ele manda e essas mesmas montanhas são poeira tombando de seus alicerces de granito.


O tufão cresce, avança sobre nós, torna em seus invisíveis braços as árvores mais gigantes e arranca-as como penugem de andorinha adormecida; sopra e das casas desmoronadas fogem espavoradas as cinzas do último fogo que reunira a família. Mas o tufão cresce ainda e não são os alicerces dos planetas que estremecem, é o Sol, imensa fornalha ardente que vomita farrapos de fogo maiores que os próprios mundos...

Cresce ainda e não são as cidades da terra e os seus milhões de habitantes que tombam à cólera de seu sopro, e não é o Sol que abre em chaga formidável seu manto de fogo, são os sóis, as nebulosas, os lumes e as monstruosas trevas do Espaço que se chocam e comovem levadas em seu sopro como o cadáver da gaivota na onda da tempestade.

Meu Deus, meu Deus, como é terrível a força do teu braço, como é terrível o assopro da tua cólera.

Não são os montes que saltam em suas bases de rocha, são os mundos que flecham em suas órbitas transviadas.

O caminho passa e quem sabe de que mundos mortos é a poeira que se lhe prende nos cabelos. Os pés do peregrino pisam na terra poeira de mundos mortos, apagados nas densas estepes das alturas.

A criação ri e o raio que lhe doira os cabelos e afeiçoa a boca é uma gota de sangue do nosso melhor Sol agonizante, e ó quantas faces cadavéricas, quantos mundos sem vida já não beijou essa gota de sangue que nos chega agora a cintilar oiro num sorriso de criança?

Meu Deus tua força é terrível e a cólera de teus olhos é mais cortante que o gume duma espada num campo de batalha!

O trovão que nos estala sobre a cabeça é um eco amortecido da tua voz justiceira, a língua de fogo que repassa e funde as rochas e os metais mais fortes é o reflexo apagado do teu olhar ardente"

Caim matando Abel
Onde esconderá Senhor sua cabeça pecadora o homem que teu olhar procure?

- Caim, Caim, que é de teu irmão Abel?

E onde se sumirá Caim de ante a tua face?

Os mundos estão na palma da tua mão, diante de tuas pupilas ardentes.

Mas não são eles, os mundos, obra da tua vontade soberana, não és o senhor deles?

Quem pode pôr barreiras no campo que te pertence? Não terá o oleiro o direito de partir, amassar e reamassar os barros que amodelou?

Os mundos são teus que neles se faça a tua indomável vontade misteriosa.

Mas as almas, Deus meu?

Flores do teu jardim que tua mão semeou na vida e que tua mão vem colher tão cedo...

Que vem fazer a Morte, que é esta vida , às sementes da vida eterna que são as almas?

Ascender na podridão a beleza desse instante?

A simples fosforescência no monturo?

Meu Deus, meu Deus, como são terríveis os caminhos da tua vontade!

E as sementes que são colhidas mal iam desenovelando a morte das criancinhas?

Que estranho cacto vermelho não será a chaga dum coração materno!

As crianças morrem para Deus ter anjos e os corações maternos ficam chagas de luz a gritar no Espaço!

Os mundos que são obra da tua mão omnipotente não te conhecem, ó que importa, pois que os arremesses num ou noutro sentido?

Mas as almas, meu Deus, conhecem-te e conhecem-se; ó para quê semear almas e vir colhê-las antes que abram, para reunir corações e dispersar cadáveres? 

(in Miguel Spinelli, «A Filosofia de Leonardo Coimbra», Braga, 1981, pp. 271-273).

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