domingo, 12 de maio de 2013

Agostinho da Silva »Onde a terra se acaba«


Agostinho da Silva

Onde a terra se acaba[1]*

Tem-se dito, e ninguém ainda o apregoou melhor que Ramalho Ortigão, que é a Holanda o resultado de uma luta contínua entre o mar e a terra, com a saída final de que a terra vencerá o mar e poderão um dia as mais sólidas e fecundas vacas do mundo substituir a até lembrança das velas que outrora correram cantos de império e tanto contribuíram, para além de todas as violências e erros, para que paire na atmosfera uma nostalgia de trópico e seja hoje a Holanda o único país europeu, isto é, de além-Pirenéus, em que o homem de cor não sente nenhuma espécie de distinção racial.
Pois o mesmo, de luta entre mar e terra, se poderia dizer de Portugal, aqui, porém, com o mar sempre vencendo, desde Fuas Roupinho e a plantação de Leiria até uma emigração que só não continua transatlântica porque o Brasil é longe e seu dinheiro incerto, pois que parece mais prezar esse país, «o que ninguém segura», as aventuras de investimentos arriscados do que as certezas orçamentais dos saldos positivos.
Sempre vencendo o mar, e contra ele protestando o Velho do Restelo e as mulheres de luto, a ciência de um Alberto Sampaio e a inteligência límpida de um Sérgio.
Parece, no entanto, que estamos atingindo o tempo de terminar a polémica. Ajudada, como é costume na História, tanto pelo que parece favorável como pelo que de momento se poderia lamentar, a industrialização da agricultura se impõe ao mundo, simultaneamente penetrando nas quase sempre duras cabeças dos políticas a ideia de que seria útil especializar-se cada país na produção mais própria de suas condições naturais. Tudo terá como resultado que cada vez menos gente terá que se ocupar dos campos e que até os hoje 6 por cento da população agrícola nos Estados Unidos nos parecerão de futuro exorbitância inútil.
Portugal se cobrirá de floresta, de pomares e canteiros, jardim à beira-mar plantado como dizia o poeta, mas sem os pobres, pelos quais não deu, pois era ministro e académico, pobres que não escaparam à sensibilidade de um António Nobre, que lhes viu nas chagas as mais vivas flores de seu país quase perdido. A sua força, porém, estará sempre no mar e no anseio de distância e no quem está longe; o horizonte de nossos rumos é o da linha sempre indistinta de céu e águas, não o de picos de montanha ou de monótonos plainos; e mora nosso rei mítico na ilha que nunca se descobre ou que se descoberta logo desapareceria para além de todos os quadros de espaço e tempo em que decorre nossa vida comum.
Navegar, porém, não postula miséria; servir o mundo não deve significar sempre abandonar-se a si próprio; unir os povos, tal é a nossa missão, não implica separar-nos do nosso próprio povo. Ninguém mais deverá embarcar porque é pobre; ninguém mais deverá, porque é ignorante em Portugal, ir ser escravo na França; que nunca ninguém mais se meta à estrada por só na estrada, e longe, ser livre, e ele. É a nossa fórmula de abastança, para lá de capitalismo e de socialismo, que temos de levar aos outros; é a nossa invenção educadora, a de deixar que gente cresça no saber, que nos será carga de novas naus; é a nossa crença no poder e na liberdade do espírito, sopro de Deus, que nos será agora um impulso de vento. Que Sesimbra o medite, pois que, por ela, ao mar se desce e ao mar se abraça.
Agostinho da Silva
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*Publicado em O Sesimbrense de 20 de Junho de 1971.

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