É de 1957 o excelente filme de Fellini, "As Noites de Cabíria" (no original, "Le Notti di Cabiria").
Cabíria vive num dos mundos pelo qual todos nós preferimos passar ao lado. Vive numa casa tosca, num subúrbio inenarrável da cidade de Roma. Prostitui-se, ganhando com isso algum dinheiro que vai pondo de parte. O local onde se mostra, juntamente com outras cúmplices de infortúnio, é um complexo de ruínas do antigo império romano.
Cabíria tem o sonho de encontrar alguém que a ame. Passa, por acaso, num velho teatro que apresenta, nessa noite, um espectáculo de ilusionismo. Cabíria entra e é escolhida por entre o público para ser parte integrante daquilo que se vai passar. Cabíria é hipnotizada, revelando perante uma plateia cheia de desconhecidos, que dela se riem, o seu sonho inocente.
No fim do espectáculo, um homem vem ter com ela. Oferece-lhe um café. O homem, tal como Cabíria, tem um olhar cansado, tão cansado, mas capaz ainda de algum brilho. Começam a encontrar-se com alguma regularidade. Ambos vivem num exílio da sociedade comum, exílio esse escolhido ou não (talvez nem os próprios saibam. E nós, saberemos?). Crescem os sorrisos e o brilho. Ao fim de algum tempo planeiam casar e comprar um pequeno negócio. Cabíria vende a sua casa tosca, levanta todo o dinheiro junto até então. Encontram-se num restaurante agradável fora de Roma, com vista sobre um lago. Cabíria leva um rolo enorme de notas, tornadas em símbolo que se metamorfoseou. Eram elas o resultado da sua vida de excepção, pela negativa, representando agora a base para o início do sonho que se irá cumprir. Mas cumprir-se-á?
O homem sugere-lhe ver o pôr-do-sol à beira do lago (ideia tão antiga esta do Sol se pôr, incorrecta, é certo, mas poética). Leva-a até ao topo de uma arriba. A testa dele sua demasiado. Compreendemos que algo está errado, muito antes de Cabíria. Ela tem os olhos ainda cheios de paixão. Escorrega, quase caindo. Nesse momento pressente o que aconteceu, o que acontece, o que vai acontecer. Os seus olhos mantêm a forma da paixão, mas são atravessados de dor, enchendo-se de lágrimas.
Com este texto apenas queria chegar aqui, onde cheguei: a este olhar de Cabíria. É um olhar humano, perfeitamente coadunado ao nosso plano humano. Há uma mulher tornada feliz que, no momento em que pressente a desilusão, junta dois sentimentos díspares no mesmo olhar. No entanto, este olhar também pode ser elevado ao plano civilizacional. Todos nós, os do Sul da Europa, ou de uma forma mais extensa, os do Mediterrâneo, compreendemos bem isto. O olhar de Cabíria são os nossos sonhos interrompidos. O olhar de Cabíria são as ruínas pelas quais passamos diariamente, representando a morte daquilo que foi projectado. Não me refiro só aos sonhos de um Cristianismo puro, aos de um Islão doce, aos dos Descobrimentos ou àquele do V Império do mundo. Refiro-me também aos sonhos mais práticos e mais recentes de uma sociedade justa, com emprego, baseada no mérito e no humanismo.
Este é o último sonho da Europa que está, agora, pleno das lágrimas de Cabíria. Qual será o final? Não falei dele propositadamente. O do filme é fácil de ver. O da Europa do Sul, logo se verá.
A. P. Rebelo
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