«A memória acredita antes de o conhecimento poder recordar. Acredita durante mais tempo do que ela se lembra, durante tanto tempo que até espanta o conhecimento. Ela conhece, lembra-se, acredita num corredor povoado de ecos gélidos, de um enorme e longo edifício com empenas, feito de tijolos vermelhos escuros, batido pela fuligem de muitas chaminés para além da sua própria, situada por trás de uma cerca num terreno sem relva cheio de resíduos de escória, cercado pelos confins de fábricas fumarentas e vedado por uma barreira de arame e aço, como uma penitenciária ou um jardim zoológico, e onde surgem, num acaso errático, órfãos vestidos com fardas idênticas de sarja azul, soltando os seus agudos palrares infantis, entrando e saindo das recordações, mas constantes no conhecimento, tal como os muros ermos e as janelas solitárias onde a chuva parece tracejar lágrimas negras com a fuligem das chaminés vizinhas.
No corredor vazio e tranquilo, durante a hora da sesta, ele era como uma sombra, pequeno até para os seus cinco anos, sóbrio e calmo como uma sombra. Ninguém poderia dizer por onde é que ele se tinha sumido, por trás de que porta, para dentro de que quarto. Mas a esta hora não havia mais ninguém no corredor, e ele sabia disso. Já fazia isto há quase um ano, desde o dia em que descobrira acidentalmente a pasta dentífrica que a dietista usava.»
[William Faulkner, Luz em Agosto; trad. Jorge Telles de Menezes, Bibliotex, 2003;
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