terça-feira, 7 de maio de 2013

Cristovam Pavia - alguns poemas


5 poemas de Cristovam Pavia




«Violiniste Bleu» (pormenor), Chagall


Poema (de uma fotografia de meu Pai comigo,
pequeno de meses, ao colo)


Vamos através do incêndio
Mas não temas, meu filho,
Podes dormir nos meus braços frescos e fortes,
Embala-te a cadência dos meus passos.

Vamos através do incêndio
E sonhas.
Detrás das tuas pálpebras a tarde
Beija e doira as folhas dos sobreiros.

E quase me esqueço
Deste puro fogo,
P'ra te dar frescura.
Arde o meu sangue calmo.
E o meu suor, arde.

E, devagar,
Vamos através do incêndio.

Dorme, meu filho.


***

O poema que hei-de escrever para ti, dando notícias
Do último reduto das coisas, das profundidades intactas,
Nasce, adormece e referve-me no sangue
Com a íntima lentidão dos teus seios desabrochando,
Porque, sei, não estás longe (nem da minha vida!), meu mistério fiel.
Hoje a nossa companhia é a tua inconsciência e o teu instinto: puro
Instinto que eu, de longe, embalo e velo
E acordará («em frente!») às primeiras palavras
Do poema, quando ele despontar.


****

Pequeno Poema

Em ti amadurece a vida como um vinho
Obscuro e raro...

Que mais queres?


*****

Que cada palavra trema dizendo
O que não pode ser dito.
E seja a poesia um violino de silêncio
Infinito.

E tu, poeta: vagabundo e despido,
Desprende-te do resto e deixa-os declamar
As vãs frases humanas. Não as ouças,
Vagabundo que passas cantando.


******

Construo a poesia como uma casa
Sem pressa e apenas com a pedra
Alheia. Duramente a construo.
Os meus versos ominados e compactos
Ligo-os com barro cor de sangue,
Amasso-os na água, mais pura do que as lágrimas.
Se comovo, é comoção não minha.
Se os meus versos são inúteis,
É inútil todo o trabalho.


Cristovam Pavia, Poesia, Lisboa: D. Quixote, 2010, p.33, 47, 143, 146, 172

Sem comentários:

Enviar um comentário