segunda-feira, 27 de maio de 2013

Simplesmente, Fiama

Fiama sente a inextricável complexidade do mundo e a sua perplexidade perante ele é permanente, embora não passiva. Essa perplexidade não paralisa a investigação activa do real, antes parece estimulá-la e desenvolvê-la. Qualquer dos seus poemas é um percurso acidentado e abrupto que gera na fragilidade irredutível de uma identidade perplexa mas insubmissa.
António Ramos Rosa

Letras & Letras, 21/ 10/ 92


Ao longo de mais de trinta anos, a poesia de Fiama Hasse Pais Brandão mais não fez do que aprofundar as relações entre a linguagem e o mundo, entre as palavras e a vida, entre as imagens linguísticas e as imagens reais. Se a poesia é um som e se a obra de um poeta é o seu som, o seu sopro, então a poesia sopra através da vastidão de uma vida e arrasta nesse sopro a

imagem dos lugares por onde passou.

Gastão Cruz

Letras & Letras, 21/ 10/ 92


(...) uma das chaves para ler esta poesia é a aceitação de que, na sua opacidade,.ela é de uma transparência absoluta: Porque tudo está nela, inclusivamente a explicitação dos princípios a partir dos quais se elabora. (...) O que resulta, então, é uma arte poética das mais interessantes e acabadas da actual poesia portuguesa, que nos faz remontar, por vezes, à romântica no modo

como torna impraticável toda a diferença entre a "palavra pensante" e a palavra poética.

António Guerreiro

O Diário, 28/ 10/ 89


(…) Quanto mais nos adentramos no âmago da poesia de Fiama, mais distinto o som do universo clássico. Não se trata de um classicismo histórico, mas do veio perene da grande tradição oriental.
Mário Garcia

Brotéria, 1997





Epístola para Dédalo

Porque deste a teu filho asas de plumagem e cera
se o sol todo-poderoso no alto as desfaria?
Não me ouviu, de tão longe, porém pensei que disse:
todos os filhos são Ícaros que vão morrer no mar.
Depois regressam, pródigos, ao amor entre o sangue
dos que eram e dos que são agora, filhos dos filhos.

Fiama Hasse Pais Brandão, in Epístolas e Memorandos, 1996





Os grous?

As viagens separam-nos do passado.
Se apenas viajássemos como grous,
sem reconhecer as nações debaixo da quilha do nosso esterno,
se não trocássemos os idiomas e as unhas
com os habitantes das novas geografias,
seríamos nós. Porque o idioma
é fechado e insondável em cada criatura,
porque cada nação é o berço de uma língua
e os meus poemas noutra língua não são meus.
Quando viajamos no mundo não sabemos quem fomos.

Fiama Hasse Pais Brandão,
em Cenas Vivas, 2000


Epístola para meus medos 


Sois: os sons roucos, a espera vã, uma perdida imagem.
O coração suspende o seu hálito e os lábios tremem
sinto-vos, vindes ao rés da terra, como ventos baixos,
poisais no peitoril. Sois muito antigos e jovens,
da infância em que por vós chorava encostada a um rosto.
Que saudade eu tenho, ó escuridão no poço,
ó rastejar de víboras nos caniços, ó vespa
que, como eu, degustaste o figo úbere.
Depois, mundo maior foi a presença e a ausência,
a alegria e as dores de outros que não eu.
E um dia, no alto da catedral de Gaudí,
chorei de horror da Queda, como os caídos anjos.





«Eu vinha para a vida, e deram-me dias»
vivos com os seus lugares e espaço.

Ontem nasci sem fim, e alimentei-me
nesta mesa que em duas se reparte.
Uma aba no mar, vagante à toa,
trouxe os sabores de ondas, de orlas.
Outra aba na terra mostrou-me as pedras
polidas, úberes, gastas. Pedras
densas que me encheram o ventre
e me criaram similar à Terra.
No mar tive cristais quebrados, jóias;
na terra, tão nítida poeira branca
que fundi as formas das flores visíveis.
...E hoje é este olhar profundo
deriva das imagens pelo mundo

Imagem MinhaFicas a ler comprazida diante das rosas 
silhueta que vislumbrei compus e reanimei. 
Tinhas o perfil marcado cruamente pela luz, 
as mãos claras no colo, os cabelos despojados 
do brilho das cabeleiras soltas, mas juvenis 
e sacudidos no início da tarde com alegria. 
As páginas balouçavam do mesmo modo que as rosas 
porque ao começar a tarde nos dias de Verão 
brisas e vapores estendem-se desde o mar 
até às margens floridas. No teu banco 
adornado por festões de rosas trepadeiras 
afastas os olhos do livro não absorta 
mas para sempre atraída por inúmeras imagens. 

Fiama Hasse Pais Brandão, in "Três Rostos - Poemas Revistos"

























Para ouvir sobre e de Fiama: 

http://soundcloud.com/marisabel-branco/110-programa-fiama-hasse-brand        

Fiama Hasse Pais Brandão (Lisboa, 15 de Agosto de 1938 - Lisboa, 19 de Janeiro de 2007) foi uma escritora, poeta, dramaturga, ensaísta e tradutora portuguesa.
A sua infância foi passada entre uma quinta em Carcavelos e o St. Julian's School. Foi estudante de Filologia Germânica na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, tendo sido um dos fundadores do Grupo de Teatro de Letras. Foi casada com Gastão Cruz.
Estreou-se como autora com Em Cada Pedra Um Voo Imóvel (1957), obra que lhe valeu o Prémio Adolfo Casais Monteiro. Ganha notoriedade no meio literário com a revista/movimento Poesia 61, em que publica o texto "Morfismos". É considerada como uma das mais importantes escritoras do movimento que revolucionou a poesia nos anos 60. Foi premiada em 1996 com o Grande Prémio de Poesia da Associação Portuguesa de Escritores. O seu livro Cenas Vivas foi distinguido em 2001 com o prémio literário do P.E.N. Clube Português.
A sua actividade no teatro iniciou-se com um estágio, em 1964, no Teatro Experimental do Porto e com a frequência de um seminário de teatro de Adolfo Gutkin na Fundação Calouste Gulbenkian, em 1970. Em 1974, foi um dos fundadores do Grupo Teatro Hoje, sendo a sua primeira encenadora com Marina Pineda, de Federico García Lorca. Em 1961 recebeu o Prémio Revelação de Teatro, pela obra Os Chapéus de Chuva. É autora de várias peças de teatro.
Traduziu obras de língua alemã, de língua inglesa e de língua francesa, de John Updike, Bertold Brecht, Antonin Artaud, Novalis e Anton Tchekov, entre outros.
Colaborou em publicações como Seara Nova, Cadernos do Meio-Dia, Brotéria, Revista Vértice, Plano, Colóquio-Letras, Hífen, Relâmpago e A Phala.
  • 1961 - "Morfismos", in Poesia 61
  • 1967 - Barcas Novas
  • 1970 - (Este) Rosto
  • 1974 - Novas Visões do Passado
  • 1976 - Homenagem à literatura
  • 1978 - Área Branca
  • 1978 - Melómana
  • 1985 - Âmago I/Nova Arte
  • 1986 - F de Fiama (antologia)
  • 1989 - Três Rostos
  • 1974 - O Texto de Joao Zorro (Obra poética)
  • 1991 - Obra Breve (Obra poética)
  • 1995 - Cantos do Canto
  • 1996 - Epístolas e Memorandos
  • 2000 -  Cenas Vivas
  • 2002 -  As Fábulas 


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